Recomeçando

“Tem fratura. Quer ver?” Assim recebi a notícia nada prevista de que havia quebrado a perna. Mais especificamente a fíbula, aquele osso mais fino que acompanha a tíbia. A boa notícia, ainda que provisória, era de que o osso não havia se deslocado e, portanto, eu não teria que passar por cirurgia. A má: seis semanas sem encostar o pé no chão.

Era 11 de outubro, um dia antes do dia das crianças, 15 dias antes do meu aniversário. Saí direto do taekwondo para o ambulatório. 

Você há de concordar comigo que dizer que quebrei a perna no taekwondo rende um certo status! Os amigos brincavam: “imagino como ficou o adversário”. Eles só não sabiam que eu não havia perdido para ninguém além de mim mesma e de uma pilha de almofadas.

O exercício era simples. Correr e executar um chute saltando por cima da pilha. Conforme eu ia passando, o obstáculo ia aumentando.

Já não me lembro a altura que estava quando entendi que não a venceria. Mas lembro bem de ter dito: “O que pode dar errado, afinal? Eu vou cair por cima de almofadas!”. 

Bem, algo deu errado.
Eu extrapolando limites! Alguém se surpreende?

Não imaginei que tinha quebrado. Uma torção leve, talvez. No outro pé, um corte que até hoje não sei como aconteceu. Estava claro que precisaria de pontos ali. E foi só pelo corte que senti a necessidade de ir direto – ou semi direto – buscar assistência médica. Digo semi direto porque no meio do caminho, passei em casa e lavei os pés. Com pontos, aquele pé não seria lavado por uns dias e, todos sabemos, sou limpinha. Botei um chinelo, peguei o carro, e fui. Se você ainda não entendeu, sim, eu fui para o médico dirigindo com a perna quebrada.

Quando avisei que aguardava o resultado do raio-X, a Nana, a sister, foi ao meu encontro. Ela estava entendendo a gravidade da situação. Eu não! Saí de lá com quatro pontos num pé, gesso no outro, e uma muleta em cada mão.

Foi bem difícil aceitar o processo logo de cara. Seis semanas é muito tempo! Andar de muletas é muito difícil! Eu não conseguia carregar nada de um lugar para o outro. Nem pegar nada que eu quisesse. Eu tinha sede e a água tava longe. Eu tinha fome, mas como preparar comida? A perna direita, com pontos no pé, latejava. Era tudo o que eu tinha como sustentação. Os músculos ardiam. Tomar banho exigia todo um ritual… É um início bem desesperador. 

Aos poucos, a gente vai se adaptando. Depois de um belo tombo de muletas na volta do banheiro na madrugada (optei por cair para não apoiar o pé no chão, vejam só que disciplinada!), Paula e Véio, compadres e físios maravilhosos, me ofereceram um andador articulado. Quem vê diz: “nossa, parece de vovô!”. Parece mesmo, mas eu amo! Sou vovó, e daí?

O andador me deu liberdade, estabilidade e me ajudou a descobrir que, arrastando sobre um móvel de cada vez, eu conseguia trazer coisas da cozinha até o escritório. Ou da cozinha até a mesa de jantar. Ou da cozinha até o sofá! O novo projeto da minha casa estava se mostrando ultra funcional para esse novo momento (quem diria, hein Jóice?). 

A primeira semana passou rápido, a segunda também (ainda que em processo de desaceleração do tempo). Mas a partir daí, foi só ladeira abaixo.

Eu sou uma pessoa positiva. Sempre! Aprendi a enxergar o mundo sob diferentes perspectivas. Eu tinha apoio, assistência. Tinha conforto, família, cuidado. Tinha amigos prestativos (foram muitos os que ofereceram ajuda). Nos raros momentos em que saí de casa, recebi muito carinho de estranhos que se ofereciam para ajudar (confesso que fiquei surpresa). E mais do que tudo, meu sofrimento teria um fim. Eu tinha uma data. Eu via uma luz no fim do túnel. Nem todo mundo tinha esse privilégio. Que motivos, então, tinha eu para ficar triste?

Até que a ficha caiu. Havia uma perspectiva que eu não estava considerando. A minha! A perspectiva de uma mulher saudável e ativa que, de uma hora para outra, teve seu processo interrompido. Uma pessoa cheia de planos a quem tinha sido imposto um obstáculo. Dos grandes! E essa perspectiva era tão válida quanto todas as outras. Me permiti aqui a tristeza.

Eu tentava me convencer de que o dia 22 de novembro estava logo ali, mas o calendário me dizia o contrário! O que fazer quando o corpo não tá funcional? Usar a mente! Para variar, me joguei no trabalho e, como se uma perna quebrada não tivesse sido suficiente para me parar, veio uma virose pré aniversário. Se você nunca teve uma virose com uma perna quebrada, você não sabe o que é diversão. Que bom que existe terapia, né Betina?

Meu humor oscilava. Primeiro diariamente, depois em turnos. No final (hoje!), já de minuto em minuto. Os amigos ajudavam. Serginho, sempre perguntando como eu estava, me passou exercícios para fortalecer a coxa e deixá-la preparada para a volta do caminhar. Tatá, minha veterinária preferida e amiga de momentos de estrupiamento, me ofereceu drogas – lícitas – para o caso de eu sentir dor. Não precisou! A Mila, além de me emprestar a bota imobilizadora dela para que eu pudesse lavar a minha, ainda fez serviço de Uber Black, me trazendo em casa e me deixando dentro do elevador! A família eu não preciso nem dizer. Se não fossem eles, tava jogada num cantinho em posição fetal. A mãe fez comida, alimentou a Stella, limpou a casa, molhou as plantas. A Nana me carregou para todo o lado, até de cadeira de rodas. O cunhado, que por azar dele é meu vizinho e também trabalha de casa, foi o mais afetado. “Meu serviente!”, como ele mesmo diz. Se não fosse por ele, as coisas teriam sido bem difíceis por aqui.

Senhor Augusto me mandou vídeos com conteúdos do taekwondo, o que me ajudou a manter a esperança de que eu não fosse perder todo um ciclo. Assisti cada um deles mil vezes. Repliquei os movimentos, mesmo sentada no sofá. Depois de joelhos num pufe. Depois de pé mesmo, sem apoiar um pé no chão. “Hoje eu tô ousada”, foi o que eu mandei pra ele junto com meus vídeos desequilibrados.

Aos poucos, fui ousando mais. Retomei a drenagem, com foco na perna, e o laser milagroso da Cris (quando ela disse que era cicatrizante, pedi que fizesse por todos os lados!). Botei um apoio na cozinha e fiz almoços bem gostosos. Assim que tirei o gesso, dei um jeito de tomar banho sozinha e pude retomar a rotina de pelo menos dois por dia. Na consulta da segunda semana, já larguei um: “doutor, o que é que eu posso fazer? Posso alongar? Posso fazer flexão, abdominal, movimentar o tornozelo?”. A evolução é lenta, mas ela vem.

É tanto aprendizado que não consigo nem listar. Uma mistura de sentimentos, notas mentais e magia. Confia no processo. Surrender. Aprenda a pedir ajuda. Molhe as plantas. Tenha paciência. Respeite seus limites. Pega o saco de gelo. Descanse. Fortaleça os músculos…

Mas o dia 22 finalmente chegou. Não menos angustiante do que todos os outros que o antecederam. O que diria o raio-x? O que acontece daqui para a frente? Quando vi a imagem, me assustei. A fratura ainda estava bem evidente. Mas o que sei eu sobre isso?

Bem, o osso tá consolidando (assim mesmo, verbo no presente contínuo. Mas não pude sair correndo do consultório. As muletas ainda me acompanharão por uns dias. Mas o pé já pode pisar no chão. Mas a fase mudou. Vencemos o chefão e subimos de nível. O vôlei vai ter que esperar mais um tempo para minha reestréia, o taekwondo deve retornar antes, ainda que bem de leve. Também vai ter caminhada na praia e toda uma vida pra que eu continue ousando, caindo, levantando e aprendendo. Afinal, que graça teria se não fosse assim?


Meu carinho e meu amor a todos que acompanharam e ainda acompanham esse processo. Vocês são especiais. A peleia segue, mas vai acabar!

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