Reconhecendo território

<English version below>

Capítulo 3

Logo na chegada estava Elio, o fundador, acompanhado por Kira e Lisa, duas cachorras vira-latas que moravam por lá. Elio nos recebeu com um abraço carinhoso e nos mostrou as instalações. Começamos pelos Tambos, pequenas acomodações individuais. Ele ia mostrando quem ficaria onde e, para minha surpresa, fiquei com o maior. Tinha dois andares e duas camas, uma em cada um. Cada cama com um mosquiteiro. Era bastante aberto, coberto apenas por telas de proteção contra insetos.

Não era nada mal, mas era longe de ser um local onde eu me sentisse segura. Especialmente pela falta de iluminação. Não tinha como ter certeza de quem eram meus companheiros de quarto. “Tudo bem”, pensei, “tenho velas e lanterna”.

Fui conhecer o resto das instalações. A casa central era o local onde faríamos as refeições. Próximo à ela, havia um banheiro com eletricidade, que poderia ser usado à noite. Uma outra construção, grande e redonda ficava à sua direita. Era ali, na chamada Maloca, onde aconteceriam as Cerimônias, reuniões e workshops. O primeiro evento tinha hora marcada. Seria nesse mesmo dia, às 16 horas.

Voltei ao meu Tambo e desfiz a mochila. Quem já fez mochilão sabe o inferno que é viajar com o armário nas costas. É impossível manter qualquer organização. Estendi tudo em cima da cama, separei os produtos de higiene e decidi que dormiria na cama de cima. O mosquiteiro era maior, achei que dormiria melhor.

Na casa central estavam servindo o almoço. Uma boa variedade, mas em pouca quantidade e nada de tempero (era parte da dieta). Ao menos o abacaxi estava bem doce. Fiquei um pouco ali e logo estava na hora da primeira reunião. Era hora de entender a programação, conhecer a dinâmica e dividir minhas intenções com os outros participantes. Sentamos em círculo, bem no centro da Maloca. Foi Anna quem iniciou a fala. Ela explicou que antes de entendermos sobre o retiro, era importante que conhecêssemos à nós mesmos como grupo. Assim, pegou um novelo de lã, segurou uma ponta e passou o novelo para Elio que iniciou sua apresentação.

Elio era um italiano, formado em ciências sociais, que havia corrido o mundo para aprender sobre plantas medicinais e trabalhar com xamãs de diversas culturas. Havia fundado o Aya Healing Retreats e estava baseado em Pucallpa. Estava feliz com a recém conquistada permissão de residência concedida pelo País. Quando parou de falar, pronunciou “aho”, segurou a ponta da linha e jogou o novelo para mim.

Me apresentei. Falei sobre minha intenção de ouvir minha própria voz e aprender a me colocar como prioridade da minha vida. Falei que precisava mudar meu comportamento e que não sabia bem como fazer isso. Segurei a ponta da linha e joguei o novelo para Adelina.

Adelina era uma americana da Flórida. Experiente em aventuras como essa. Queria seguir seu caminho de cura, encontrar tranquilidade e novas experiências. Ela jogou o novelo para Nathan, outro americano, esse da Califórnia. Veterano do exército, havia passado boa parte da suas juventude em países do Oriente Médio. Depois de diversas tentativas de tratamentos e terapias convencionais, encontrou seu caminho de cura através da Ayahuasca. Já havia participado de doze Cerimônias.

Nathan jogou o novelo para Tracy, outra americana. Tracy parecia bem jovem, falou sobre ainda estar no processo de compreender suas intenções. Sabia que queria encontrar novos caminhos para sua vida, novos entendimentos. Compreendia que ali conseguiria descobrir mais sobre si mesma. Tracy, assim como eu, nunca havia experimentado Ayahuasca.

Tracy jogou o novelo para John, um inglês que mora já há alguns anos nos Estados Unidos. John vinha em busca de respostas. Assim como eu, estava tentando encontrar uma alternativa para sua vida, algo que fizesse mais sentido. De John para Tatiana, uma canadense da British Columbia. Uma jovem determinada a conhecer locais sagrados e a desbravar lugares fora e dentro de si mesma. Tatiana contou sobre seu desejo de um dia ser uma facilitadora e que, para isso, precisa ainda aprender muitas coisas sobre as plantas medicinais e sobre si mesma.

Ela passou a palavra para Otto, um australiano que já estava na estrada há alguns anos em busca do seu lugar no mundo. Otto falou sobre sua intenção e passou para Elyse, também australiana, mãe do Felix, que ainda não completara um ano. Elyse mora no Peru há quase dois anos. Disse ter encontrado no País o seu lugar. Fazia uma caminhada para seu próprio desenvolvimento. Entendia que ainda precisava evoluir. Por fim falou Anna, a facilitadora que havia iniciado a roda. Anna era americana, mas estava como residente no Peru. Buscou terapias e tratamentos indígenas e espirituais durante sua vida, passando por México, Índia e Peru. Nos acompanharia durante todo o processo.

Cada um prendia no dedo um pedaço da linha vermelha. Em grupo, formamos uma teia de energia, compreendendo que a partir daquele momento, a energia de um influenciaria na do outro. Foi como estabelecer um vínculo imediato. Era a criação de uma família que, pelos próximos dias, se conheceria pela coexistência em silêncio.

Elio então ditou as regras que passariam a valer a partir daquele momento, com exceção do silêncio, que iniciaria no quarto dia:

  1. O silêncio era obrigatório. A comunicação se daria por mensagens em um Livro do Silêncio, apenas entre participantes e facilitadores. Claro, os facilitadores estariam à disposição caso alguém precisasse conversar e havia um banco, onde a Maestra Juanita, nossa xamã, ficaria na maior parte do dia, em que se poderia conversar.
  2. Não seria permitido o uso de aparelhos eletrônicos. A não ser que fosse para escrever sobre a experiência, usar como alarme ou ouvir músicas espirituais e mantras.
  3. Não seria permitido o uso de aparelhos celulares para contato com outras pessoas. Em caso de urgência, deveria ser solicitado a um dos facilitadores.
  4. Leitura era permitida, desde que livros de cunho espiritual. Ainda assim, sugeria-se o foco no entendimento profundo de si mesmo. Havia pego um de Carlos Castañeda com o título “Os ensinamentos de Don Juan” da uma mini biblioteca que encontrei na casa principal.
  5. Abstinência sexual era obrigatória. Ninguém verificaria, mas era o ideal para manutenção do ambiente e para a apreciação da solidão.
  6. Recomendava-se o jejum. Conforme as recomendações da Maestra e as possibilidades de cada um.
  7. Era solicitado uma atitude de solidão. Isso significava não olhar, cumprimentar, sorrir ou se comunicar de qualquer forma com outro participante.
  8. Não era recomendado que olhássemos fotografias, seja da família, de amigos ou de comida.
  9. Manter um diário era altamente recomendado. Segundo os facilitadores, a experiência com a Ayahuasca pode não ser muito clara. Manter anotações das visões poderiam auxiliar o processo de entendimento posterior.

————

O dia seguinte iniciaria às 7h30 com uma aula de Yoga oferecida pela Anna. A participação não era obrigatória, mas recomendada. Depois do café da manhã, haveriam as consultas individuais com a Maestra Juana. Neste mesmo dia, após o jantar, Anna daria uma aula de Qi gong (tipo yoga), com movimentos iniciantes e uma meditação final para nos preparar para a primeira noite de sono.

Na ida para o quarto, a maior lua que já vi. Amarela, linda, cheia. Seu reflexo na água do lago. Ela parecia responder minhas dúvidas, me dizendo: “É isso mesmo. Confie no processo”.

Voltei para o quarto, na escuridão da floresta, e nada poderia me preparar para o que eu vi quando cheguei no Tambo. Já havia me encontrado com rãs, lagartixas e aranhas, mas até aí tudo bem. Haviam baratas por todo o segundo andar! Caminhavam por minhas roupas e se escondiam atrás da minha mochila. Entre pânico e compreensão de que eu mesma precisaria solucionar aquilo, voltei ao andar de baixo, baixei o mosquiteiro e dormi por ali mesmo. Deixaria a luta com as baratas para a manhã do dia seguinte, quando houvesse luz natural no cômodo.

Dormi relativamente bem. Era cedo e os sons da floresta ajudaram a esquecer das inimigas do andar de cima. Acordei às três da manhã e encarei a escuridão para a habitual ida ao banheiro. Retornei e acordei em tempo para a aula de Yoga.

aya

Chapter 3

Upon arrival there was Elio, the founder, accompanied by Kira and Lisa, two stray dogs that lived there. Elio received us with a warm hug and showed us the facilities. We started with Tambos, small individual accommodations. He was showing who would stay where and, to my surprise, I got the biggest one. It had two floors and two beds, one on each. Each bed with a mosquito net. It was quite open, covered only by insect protection screens.

It wasn’t bad, but I was feeling far from safe. Especially because of the lack of lighting. I couldn’t be sure who my roommates were. “Okay,” I thought, “I have candles and a flashlight.”

I went to see the rest of the facilities. The central house was where we would eat. Next to it, there was a bathroom with electricity, which could be used at night. On the right, another large, round building. It was there, in the so-called Maloca, where Ceremonies, meetings, and workshops would take place. The first event was scheduled for 4 pm that same day.

I went back to my Tambo and undid the backpack. Anyone who has backpacked knows the hell it is to travel with the closet on our backs. It is impossible to maintain any organization. I spreaded everything on the bed, separated the hygiene products, and decided that I would sleep in the top bed. The mosquito net was bigger, I thought I would sleep better.

In the central house they were serving lunch. A good variety, but in little quantity and no seasoning (it was part of the dieta). At least the pineapple was very sweet. I stayed there for a while and it was time for the first meeting. We talked about the program for the retreat, learned about the dynamics, and shared our intentions with the other participants. We sat in a circle, right in the center of the Maloca. Anna started the speech. She explained that before we understood about the retreat, it was important that we get to know ourselves as a group. So, she took a ball of wool, held a point, and passed the ball to Elio who started his presentation.

Elio was Italian, graduated in social sciences, and had traveled the world to learn about plant medicines and to work with shamans from different cultures. He had founded Aya Healing Retreats and was based in Pucallpa. He was happy with the newly obtained residence permit granted by Peru. When he stopped speaking, he said “aho”, held the end of the line and threw the ball at me.

I introduced myself. I talked about my intention to hear my own voice and learn to make myself a priority in my life. I said I had to change my behavior, but didn’t know how to do it. I held the end of the line and threw the ball at Adelina.

Adelina was a North American from Florida. Experienced in adventures like this. She wanted to follow her healing path, find tranquility and new experiences. She threw the ball to Nathan, another North American, this one from California. A veteran of the army, he had spent much of his youth in Middle Eastern countries. After several attempts at conventional treatments and therapies, he found his healing path through Ayahuasca. He had already participated in many Ceremonies.

Nathan tossed the ball to Tracy, another North American. Tracy looked very young, talked about still being in the process of understanding her intentions. She knew that she wanted to find new paths for his life, new understandings. She understood that there she would be able to discover more about herself. Tracy, like me, had never tried Ayahuasca.

Tracy threw the ball to John, an English man who was now a United States citizen. John was looking for answers. Like me, he was trying to find an alternative to his life, something that made more sense. From John to Tatiana, a Canadian from British Columbia. A young woman determined to visit sacred places and to explore places outside and inside herself. Tatiana told usnabout her desire to be a facilitator one day and that, for that, she still needed to learn many things about plant medicines and about herself.

She gave the ball to Otto, an Australian who had been on the road for a few years in search of his place in the world. Otto talked about his intention and passed it on to Elyse, also an Australian, Felix’s mother, who was not yet one year old. Elyse has lived in Peru for almost two years. She said she found her place in the country. She was on her own path of development, and though there were still some evolving to be done. Finally, Anna, the facilitator who started the circle, spoke. Anna was a North American, residing in Peru. She sought indigenous and spiritual therapies and treatments during her life, passing through Mexico, India, and Peru. She would accompany us throughout the process.

Each held a piece of the red thread on his finger. As a group, we formed a web of energy, understanding that from that moment on, the energy of one would influence that of the other. It was like establishing an immediate bond. It was the creation of a family that, for the next few days, would know each other by a silent coexistence.

Elio then dictated the rules that would apply from that moment on, except for the silence, which would start on the fourth day:

  1. The silence was mandatory. Communication would take place through messages in a Book of Silence, only between participants and facilitators. Of course, the facilitators would be on hand if someone needed to talk and there would be a bench, where Maestra Juanita, our shaman, would stay for most of the day, where you could talk as well.
  2. The use of electronic devices would not be allowed. Unless it was used to write about the experience, as an alarm, or to listen to spiritual songs and mantras.
  3. The use of cell phones would not be allowed to contact other people. In case of urgency, one of the facilitators should be informed.
  4. Reading was allowed, as long as it was books of a spiritual nature. Still, it was suggested to focus on a deep understanding of ourselves. I had taken one book by Carlos Castañeda with the title “The teachings of Don Juan” from a mini library I found in the main house.
  5. Sexual abstinence was mandatory. Nobody would check, but it was ideal for maintaining the environment and for enjoying the solitude.
  6. Fasting was recommended. According to Maestra’s recommendations and the possibilities of each one.
  7. An attitude of solitude was requested. This meant not looking, greeting, smiling, or communicating in any way with another participant.
  8. It was not recommended that we look at photographs, whether of family, friends, or food.
  9. Keeping a diary was highly recommended. According to the facilitators, the experience with Ayahuasca may not be very clear. Keeping notes of the visions could help the process of further understanding.
    ————

The next day would start at 7:30 am with a Yoga class offered by Anna. Participation was not mandatory but recommended. After breakfast, there would be individual consultations with Maestra Juana. That same day, after dinner, Anna would teach a Qi gong class (like yoga), with beginner movements and a final meditation to prepare us for the first night’s sleep.

On the way to the room, the biggest moon I’ve ever seen. Yellow, beautiful, full. Its reflection in the lake water was astonishing. It seemed to answer my questions, telling me, “That’s right. Trust the process”.

I went back to the room, in the darkness of the forest, and nothing could prepare me for what I saw when I arrived at my Tambo. I had already met frogs, geckos, and spiders, but so far so good. There were cockroaches all over the second floor! They walked by my clothes and hid behind my backpack. Between panic and the realization that I would need to solve this myself, I went back downstairs, lowered the mosquito net, and slept right there. I would leave the fight with the cockroaches for the next day, when there would be natural light in the room.

I slept relatively well. It was early and the sounds of the forest helped to forget the enemies from upstairs. I woke up at three in the morning and faced the darkness for the usual trip to the bathroom. I returned and woke up in time for Yoga class.

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