Em respeito aos limites

Capítulo 18

O dia estava ótimo, a começar pela última yoga do retiro, finalizando com o chakra do terceiro olho e o de cima da cabeça. Acho que o poder conversar fez bem ao grupo e, especialmente à mim. Ao mesmo tempo, sei que ter tido o silêncio no início foi importante para ouvirmos a nós mesmos e nos reconhecermos como indivíduos antes de nos reconhecermos como grupo.

Estava muito quente. Acho que próximo aos 40 graus. Pela manhã os índios Shipibo trouxeram roupas, tapeçarias e artesanatos, formando um pequeno mercado informal. Optei por não comprar nada, mas o grupo saiu bem colorido. Aproveitei o sol e o calor para um banho de lago. Devo ter queimado um pouco as bochechas, mas foi muito refrescante. Logo, Tatiana e Nathan se juntaram a mim.

O almoço pareceu mais gostoso, mas pode ter sido pela ótima conversa que tivemos enquanto comíamos. Rimos e nos divertimos com as histórias, experiências e visões de cada um.  Descobrimos que ontem havia sido aniversário do Otto. Que bom que, mesmo sem sabermos, ele havia tido um bom dia. 

Tivemos mais uma rodada de Baño de Amor, brindada ao final por uma chuva esparsa que trouxe um pouco de frescor, ainda que logo tenha parado. As folhas do banho seguiram comigo por um tempo e, a cada ida ao banheiro, deixava um rastro verde.

Mais tarde, Juanita nos guiou pelas recomendações pós dieta. Ela iniciou explicando que havia cuidado de nós por todos esses dias, fazendo uma limpeza e nos auxiliando na conexão com Noya Rao. Agora chegara a nossa vez de cuidar dos nossos próprios corpos. Segundo ela, se não cumpríssemos as recomendações, existia a possibilidade de nosso corpo responder com vômito e diarréia. Ou algo mais sério! E como ela não estaria conosco, não poderia nos ajudar. Logo seguiu com as instruções:

  • Dois meses sem sexo
  • Um mês sem carne vermelha
  • Um ano ao menos sem carne de porco, mas preferia que nunca mais comêssemos
  • Uma semana sem peixe cru, incluindo ceviche
  • Duas semanas sem álcool
  • Uma semana sem leite e derivados
  • Uma semana sem óleo ou frituras
  • Uma semana sem comidas e bebidas fermentadas
  • Uma semana sem bebidas ou comidas geladas
  • Um a dois meses sem outras plantas medicinais
  • Três a quatro meses sem marijuana
  • Um a dois meses sem outros psicodélicos

Anna reforçou ainda que deveríamos ouvir nosso corpo e nossa intuição sobre alimentos que fôssemos ingerir, e sugeriu que aqueles que desejamos muito, fossem evitados por um pouco mais de tempo. A noite, durante a quinta e última Cerimônia de Ayahuasca, a dieta seria fechada pela Maestra, que cantaria Arkanas, que segundo ela são canções para proteção.

Senti por saber que sairia do Peru sem comer ceviche e carne de alpaca, mas só de pensar em algumas das coisas que foram mencionadas, meu estômago se revoltou. Saí da Maloca direto para o banheiro, onde pude já perceber os efeitos que qualquer infração dessas teria no meu corpo. Fezes, vômito e menstruação. Tudo junto. Melhor seguir à risca.

Fui para a Cerimônia ainda sem saber se tomaria ou não a medicina. Estava me sentindo um pouco enjoada e tinha muito forte na minha cabeça a lembrança da última vez, quando pensei comigo mesma que deveria lembrar daquela sensação para que eu não repetisse a dose. Quando falei sobre isso com Anna pela manhã, ela disse que eu poderia tomar menos quantidade, ou participar da cerimônia sem tomar, como fizera Tatiana na última.

Capítulo 19

Minha primeira intenção com o retiro, era aprender a ouvir minha própria voz. Sabia que eu tinha muito o que dizer a mim mesma, mas por algum motivo, essa voz andava cansada, fraca, quase apagada. Assim, achei que era hora de não me jogar com tudo, de não ir até o limite, e mais do que isso, não ultrapassá-lo. Ouvi meu corpo, minha voz e a mensagem de Noya Rao e optei por não tomar Ayahuasca na última Cerimônia. 

Não foi uma decisão fácil. Não queria deixar de viver a experiência e os aprendizados que ela traria. Ao mesmo tempo, sabia que era a decisão acertada.

Quando chegou minha vez, fui até o centro, sentei com as pernas cruzadas e informei a Elio que não tomaria a medicina naquela noite. Sem julgamentos, ele pediu que eu encostasse com o dedo na bebida e fizesse uma marcação, como um risco, em minha testa. Assim eu fiz e retornei ao meu lugar.

Mesmo sem ingerir Ayahusca, senti os efeitos como se houvesse ingerido. Sentia enjôo, ânsia de vômito e não confiava no meu intestino. Fiquei lá, deitada, no escuro e no silêncio. Pensava, “não é possível que ainda assim, serei a primeira a vomitar de novo”. E assim foi. Mas dessa vez preferi ir ao banheiro, pois não tinha certeza de por onde sairia o que eu precisava botar para fora.

Retornei e logo Juanita começou a entoar seus ícaros e cânticos. Dessa vez, como ela havia dito, as canções seriam diferentes, as Arkanas. Em Shipibo, ela encerrava a dieta, pedindo a proteção eterna da Noya Rao. Falava em escudos e espadas, além de um manto de flores e da pintura indígena no corpo que nos protegeria daqui para a frente. Como nas outras vezes, ela passou um por um, cantando em frente a cada um e, ao final, dando o tradicional banho de cuspe com Água de Florida.

Foi uma noite de reflexão e muita gratidão por tudo o que eu estava vivendo, além de todo o aprendizado e limpeza promovidos nessas duas semanas. Refleti sobre o caminho que havia me trazido até ali. Entendi que eu não havia procurado a Ayahuasca, mas ela a mim. E sou grata por esse encontro.

Logo, encostei meu braço na testa e passei a Ayahuasca para ele. Depois acabei passando o braço no cabelo e tudo ficou grudento. Ri comigo mesma da patetice e do espírito infantil que me havia acometido. Fiquei feliz por despertá-lo. Parecia que Juanita estava na mesma vibração e, ao final, ria e cantava enquanto Ana sugeria algumas músicas ao grupo.

Minha música final foi Banana Pancakes, do Jack Johnson e pude contar com a ajuda da turma toda. Não sem antes perguntar a Tracy se meu chapéu mágico estava na minha cabeça, para a diversão de todos. Durante à tarde, ela havia dividido que adorava quando eu cantava e que, quando olhava para mim, me via com um chapéu pontudo, como se fosse uma pequena cabana em minha cabeça.

John pegou o violão quando foi sua vez e nos brindou mais uma vez com sua linda e doce voz. A energia estava alta. Ao final, me despedi de Elio, que pegaria um vôo em seguida, e fui para o meu Tampo encerrar minha noite.

Capítulo 20

O dia amanheceu bem quente mais uma vez. Encontrei com John na pia para escovar o dentes e ele foi dali para o lago. Certo ele. Eu não queria carregar roupa molhada na mochila, então decidi que hoje não haveria banho. Além do mais, o lago era meio barrento e a água estava bem rasa.

Peguei um Mapacho e fui para a casa central. Sentei na varanda e, aos poucos, outras pessoas foram chegando. Otto, Tracy, Adelina. As caras eram a mistura de todo dia pós cerimônia, cansaço com alegria, poucas horas dormidas, mas sono de qualidade, angústia e orgulho. Trocamos um pouco do que foi a experiência do dia anterior para cada um de nós. O café da manhã tinha sal, limão e até pimenta. Uma benção dos céus.

Tive oportunidade de conversar mais com a Tracy. Que menina espetacular. Quero muito poder recebê-la em minha casa um dia. Ficamos conversando por ali até a hora da roda de conversa. Mais uma vez, grandes aprendizados, mas mais do que isso, muita gratidão, a tudo e a todos.

Esperávamos ansiosos pelo menu do almoço. Torcíamos por peixe, mas teve frango. Mas o que de fato importava era o sal. Depois do almoço fiquei com Felix por quase uma hora enquanto Elyse subia na torre da caixa d’água para acessar a internet e reservar um vôo para Cusco. Na volta, pude conversar bastante com ela, conhecer sua história e as razões por ela estar buscando cura. É uma verdadeira guerreira. Senti sua dor, mas ao mesmo tempo, me senti inspirada por sua força e determinação.

Era o último dia do retiro. Me sentia feliz por voltar para a cidade, ao mesmo tempo que melancólica por deixar aquela rotina tão calma e tão focada em mim. Aparentemente esse sentimento era compartilhado por todos. Também havia a ansiedade por retornar ao dia a dia sem a certeza de conseguir manter os aprendizados que tive ali. Entendendo que teria que explicar como havia sido o retiro, ainda que as pessoas não conhecessem tudo o que havia me feito chegar até ele.

Mais tarde, recebemos Jess e Marcela, representantes da Alianza Arkana, que vieram apresentar o projeto. Elas trabalham com as comunidades indígenas dos povoados peruanos, com alguns objetivos voltados para a saúde e manutenção da cultura Shipibo. Sem auxílio do governo e sobrevivendo apenas com doações de pessoas físicas e algumas empresas, promovem workshops que vão desde o conhecimento das plantas, até prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou causadas por parasitas, como a anemia, por exemplo. Também fazem um trabalho de valorização do artesanatos e das técnicas de bordado, e ainda do idioma, que acaba se perdendo com cada vez mais índios indo para a cidade buscar um estudo de qualidade.

Antes do jantar, tivemos nossa integração final, focada na volta à rotina e na boa readaptação. Anna falou que deveríamos retornar devagar e, acima de tudo, entendendo que as outras pessoas, família e amigos não passaram pela experiência, então era bom mantermos a calma e a empatia, bem como nos resguardar um pouco com relação aos aprendizados. Mas antes, ela havia preparado um doce de cacau para comemorarmos o aniversário do Otto.

Ao invés de passar regras, Anna preferiu nos passar a palavra, pedindo que cada um sugerisse algumas práticas para um retorno não traumático à vida real. John foi o primeiro. Ele sugeriu que mantivéssemos um espaço em nossa vida para refletirmos e nos ouvirmos. Encontrar esse momento, diariamente, através da prática da meditação, da Yoga, de oferendas à Noya Rao ou outra atividade que seja do agrado. Já Tracy sugeriu usarmos algo, todos os dias, que nos permita lembrar do caminho de cura. Seja uma roupa, uma cor ou um acessório, algo que mantenha a experiência acessa em nossas mentes.

Adelina veio na sequência. Sugeriu mantermos o diário e a atenção às nossas próprias reflexões, além de cuidar com as grandes expectativas. Sugeriu que, da lista de coisas que queremos incorporar às nossas vidas, escolhamos uma ou duas. E só irmos adiante quando essa uma ou duas coisas houverem sido dominadas. Assim evitamos ansiedade e frustração. Nathan complementou falando sobre a importância de mantermos as relações. Comentou que era importante pedirmos ajuda, procurarmos ajuda, e que é na família e amigos que encontramos essas luzes.

Tatiana sugeriu que trabalhássemos para que a experiência seja cada vez mais integrada à nossa vida, para que ela não passe a ser apenas um momento recreativo. Ela também comentou sobre o poder da visualização, explicando que sempre que precisássemos, poderíamos retornar à floresta. Eu falei na sequência. Falei sobre a importância de entendermos o todo e, dessa forma, conseguirmos explicar para quem quiser saber que não foram apenas duas semanas. Que a o retiro fez parte de uma história que começou antes e que ainda segue por muito tempo. Expliquei que focar num segmento da história seria negligenciar nossa bagagem, nosso repertório, nossos traumas e vitórias que nos fizeram quem somos. E claro, falei ainda sobre a importância de sermos honestos e da mesma forma, pedir honestidade. “Quer realmente saber como foi?” ou “Não me sinto bem com essa atitude quando eu divido algo pessoal”, expliquei.

Otto foi o último e sugeriu associarmos a cura a um lugar, como a praia, por exemplo. Um local onde possamos nos conectar com Gaia, com Noya Rao e com Pacha Mama. Ainda comentou que a melhor forma de mudar qualquer coisa, é ser a mudança, mostrar que é possível, servir de exemplo. Anna concluiu falando sobre a importância de sermos felizes. Repetiu que o caminho de cura não precisa ser penoso ou dramático, que somos seres humanos e merecemos celebrar. E também nos permitirmos ter dias ruins. Também reforçou a importância de cuidar do corpo, fazendo exercícios e mantendo uma alimentação consciente. 

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