Na dualidade das emoções

Capítulo 12

A terceira Cerimônia me trouxe momentos de muita alegria. Como já de costume, o vômito veio rápido, mas com ele, alucinações lindas e inspiradoras. Eu estava ali, deitada estática, sentia o corpo adormecido, formigando, e me via nas paisagens do artista visionário que conhecêramos pela manhã. Era uma sensação maravilhosa de bem estar. Quando sentia o corpo formigando muito, fazia um esforço mental para voltar e abria os olhos.

Me transportei de corpo algumas vezes, iniciando por uma bebê aranha sendo muito bem cuidada e protegida pela mamãe aranha. Sentia conforto, carinho e segurança. Fiquei ali por um tempo, vendo a vigilância de quem me protegia e recebendo alimento para meu desenvolvimento. Na sequência, virei um bebê pássaro ensaiando meus primeiros vôos. E como foi difícil. Alguns rasantes e logo eu estava novamente no chão. Tentava imaginar longe, visualizar que conseguiria, mas precisava fazer muita força e parecia que ainda não estava em condições de voar. Pela dor que senti nas pernas no dia seguinte, imagino que eu estivesse tentado com os membros errados.

Fui ainda um filhote de felino. Impossível saber se um jaguar, um puma ou um leão. Mas brincava e rolava na grama verde com meus irmãos. Sentia muita paz. Me sentia em casa. Nesse momento, a Maestra começou a cantar.

Sentia enjôo e sono, mas não queria sair daquele transe. Por vezes, algumas coisas ruins apareciam, como facas, ou mesmo aranhas (dessa vez não no bom sentido). Nessas horas, abria os olhos e pensava “não quero nada de ruim hoje”. Até que Noya Rao apareceu. Dessa vez em forma de gente. Não sabia definir se era homem ou mulher, mas era imponente. De repente meus ouvidos fecharam e comecei a sentir crescer a minha volta uma grande bolha transparente, um pouco rosada. Ela estava me ensinando a me proteger. Me mostrou que a intenção com as facas era apenas me mostrar que, sempre que eu precisasse, eu poderia recorrer a este sentimento. Um sentimento de entorpecimento e segurança. Como se ali, nada pudesse me atingir.

De repente apareceu um bebê em um berço, bem na minha frente, ainda numa das paisagens dos quadros de arte visionária. Imediatamente o transformei em luz e voamos. Voamos do Peru ao Brasil e até o apartamento da minha irmã. Entrei em seu quarto e a vi ali, dormindo em sua cama. A Penny, sua cachorra, me viu, mas não latiu como de costume. Estava ela também na cama e assim ficou, assistindo enquanto eu depositava a luz na barriga da sua mamãe. Era uma sensação de alegria profunda. Tanto por saber que estava entregando a ela o sonho do momento, quanto por ter conseguido voar.

Maestra Juanita cantou longamente em frente à minha cama. Por um momento, a Maloca estava na completa escuridão e silêncio. Não havia ninguém batendo no chão ou pedindo ajuda. Nenhum Mapacho acesso. Apenas o escuro, o silêncio e a voz de Juanita. Senti muito amor e energia nesse momento e, pela primeira vez, não dormi assim que ela passou para a próxima cama. Dessa vez a vi concluir o círculo e retornar ao centro.

Elio então pegou o violão e começou a cantar. Aos poucos, íamos aprendendo as canções e tentando acompanhar, ainda deitados, ainda que só o refrão. Um a um, fomos sentando. Todos menos Otto, que começou a vomitar com muita angústia e dor. Seguimos cantando, até que Anna tomou a palavra para perguntar como estávamos. Elyse deu seu ok, mas não quis cantar. Na sequência, Tatiana. “Agora estou bem, mas adoraria um abraço”, disse. Minha vontade era de me arrastar até ela e abraçá-la, mas ainda me sentia alta e fiquei com medo de virar algum pote de vômito. Ninguém foi até ela. Meu coração ficou partido.

Tracy estava bem e passou a palavra para mim. Contei que havia viajado muito e, por isso, estava exausta, mas muito feliz. A única música que me veio à cabeça foi:

Is this love,

is this love,

is this love that I’m feeling?

Todos cantaram juntos e assim a roda seguiu. Adelina, Nathan, John – que cantou lindamente –  e Otto, que seguia lutando com suas angústias. Assim, seguimos cantando e emanando amor para que ele pudesse superar o que estava sentindo e encontrar a cura. Logo ele caiu no choro. Cantamos mais alto. A energia desse momento foi inexplicável.

Quando encerramos a roda, resolvi retornar para o meu Tambo. Passei pelo banheiro antes e coloquei sobre a caixa da descarga, minha garrafinha de água e o isqueiro. Senti que elas balançaram, mas entendi que era em função do meu senta e levanta da privada. Ainda lembro ter pensado algo como “eu não deveria, neste estado, arriscar colocar a garrafa em cima da caixa da descarga. Ela poderia cair no vaso”.

Fui para o quarto e deitei. Logo em seguida apareceu Elio perguntando se estava tudo bem, já que havíamos tido um terremoto consideravelmente forte. Nem cheguei a me assustar, afinal, devo ter achado que era coisa da minha cabeça. Ainda deitada lembro de pensar “sim, definitivamente a Terra tá balançando. Não, eu estou balançando. Não, estamos todos parados e minha cabeça que não está querendo parar”. 

Capítulo 13

A roda de conversa foi bastante intensa, como já de costume. Antes de qualquer coisa, ofereci à Tatiana o abraço que ela havia solicitado ao final da Cerimônia. Me senti bem por poder dar à ela um pouco de amor e conforto. Dividimos nossos aprendizados e Otto contou um pouco do que passou, seus medos e do amor que sentiu emanando de todos nós. A roda é sempre um momento muito profundo, onde conhecemos um pouco melhor a cada um.

Dormimos juntos, cantamos juntos, vomitamos juntos, dividimos nossas piores dores, nossos maiores medos, nossas pequenas conquistas. Não tem como ficar mais íntimo do que isso. Aos poucos, os laços vão se formando. Sinto ainda ter tido pouco contato com John. Mais reservado, ele segue firme as regras do silêncio. Ao menos comigo.

Eu já me vejo cansada da floresta. Conto os dias para tomar um banho quente e viver em um lugar onde o conceito de limpeza seja ao menos um pouco mais próximo do meu. Quero caminhar sem ter que constantemente tirar teias de aranha do meu rosto ou cabelo. Quero ver as estrelas sem me preocupar com mosquitos. Quero sentir de novo o silêncio de nenhum zumbido em meu ouvido. Quero conversar com as pessoas, trocar experiências, conhecer histórias.

Fico eu aqui, no meio da floresta, tendo a certeza de que sou de praia. Quero também um banheiro no quarto, para que eu não precise segurar o xixi, nem sair a noite, no escuro, de lanterna em mãos, para conseguir voltar a dormir. Penso se fazer jejum não seria melhor do que seguir comendo essa comida pálida, sem cheiro e sem sabor. Penso nos lugares lindos que ainda irei conhecer… Machu Picchu, Montanha Colorida, Lago Titicaca.

Ao mesmo tempo, o livro fala sobre viver o agora. Sobre estar presente. Penso nos desafios impostos por Noya Rao e nos sacrifícios que ela pede como prova do comprometimento com a elevação espiritual. Rezo, medito, respiro. Tento encontrar a paz comigo mesma e com o ambiente. Sei que tudo isso faz parte da jornada. Entendo. Aceito. Agradeço.

Capítulo 14

Durante a cerimônia de Noya Rao da noite passada, descobri que Nathan também está indo a Cusco. Provavelmente terei companhia em alguns passeios e confesso que gosto da ideia.  Segundo Anna, outros também irão para o mesmo destino. Resta saber quem.

Esta seria a última cerimônia em que beberíamos o chá da árvore mestra da nossa dieta. Após a quarta Cerimônia de Ayahuasca, teríamos uma sessão de Baño de Amor, com um preparo feito por Maestra Juanita com o que sobrou da bebida. Receberíamos esse banho como a conclusão desse laço que deve permanecer para sempre, já que a partir de agora, Noya Rao já vive em cada um de nós. Anna conduziu mais uma vez de forma maravilhosa, com uma meditação poderosa ao final.

Eu havia dormido três horas durante à tarde e ainda assim, dormi bem a noite toda. Meu sono tem sido profundo por tanto tempo, de acordo com o aplicativo que uso para monitorá-lo, que parece que eu saio do corpo e me transporto dali. A sensação quando acordo é de quem acaba de sair de um belo descanso.

Acordei super disposta para a yoga. Dessa vez trabalharíamos o chakra da garganta, da expressão. A prática dessa vez foi um pouco mais fluida, com movimentos orgânicos e menos poses estabelecidas. Nos trouxe grande sensação de bem estar e decidi que o dia seria bom, que não pensaria mais no final do retiro, por mais difícil que isso fosse. Também decidi me focar nas frutas, já que essa é a parte boa da comida aqui.

Ainda pela manhã, Anna convidou à todos para fazermos juntos um Despacho. O ritual tem origem nos Andes e é uma oferenda à Pacha Mama, ou à Mãe Terra. Pediu que escrevêssemos bilhetes com desejos e que colhêssemos algumas flores e folhas. O Despacho seria queimado no dia seguinte.

Escrevi minha carta agradecendo à tudo o que sou e a tudo o que conquistei. Agradeci à minha curiosidade, que me faz sempre querer conhecer mais, à minha família e amigos, ao amor que sinto de cada um. Agradeci às oportunidades que me foram dadas e também por tê-las reconhecido e aproveitado quando achei que deveria. Pedi mais uma vez para que Noya Rao me guiasse pelo caminho que fosse melhor para mim e para o meu aprendizado. E pedi para que meu gato Johnnie Walker se curasse de um câncer intratável. Que se não fosse possível, que ele vivesse o máximo possível sem dor. E que quando a dor fosse inevitável, que ele fizesse a passagem por ele mesmo, em paz e de forma confortável, preferencialmente comigo ao seu lado.

Anna iniciou o Despacho estendendo uma folha de papel de seda branco na mesa. No centro, colocou uma concha, representativa da água como fonte de vida. Explicou ainda que a concha é o que fica, é a base. Que ela pode ficar por dias na fogueira, mas que ela não se destrói, assim, representa também a força de uma boa estrutura. Na sequência, preencheu a concha com gordura de Alpaca. Explicou que a Alpaca é um animal adorado nos Andes por ter o servir como essência. Sua carne serve de alimento, sua gordura, de energia para iluminação, seus ossos para ferramentas e sua lã e couro para roupas e artefatos. Anna explicou que nos Andes, a elevação espiritual buscada é a de servir por inteiro, assim como a Alpaca.

Na sequência foram entrando outros elementos, grãos representativos de intenções e energias. Lembro que a quinoa representava a superação de obstáculos. “A quinoa nasce em qualquer terreno, mesmo os mais duros ou rochosos. Ela representa a esperança e a possibilidade de reverter as adversidades”, explicou Anna. Uvas passa significavam os anciãos. “Eles ganham rugas, mas ficam mais doces”, disse. Também grãos de milho, folhas de coca, balas e doces. “Precisamos sempre lembrar de festejar. Somos seres humanos e merecemos momentos de prazer”, continuou Anna.

Ao final, alcançamos nossas cartas e cobrimos a oferenda com as flores colhidas pela floresta. Anna então embrulhou tudo com o papel de seda branco que estava na base e amarrou com um cordão. Depois o colocou em um papel de presente, passando ainda cordas de duas cores em torno dele. Por fim, adicionou as folhas que havíamos colhido junto com as flores. Era uma oferenda cheia de energias e intenções e esperávamos que fosse bem recebida.

Com as emoções à flor da pele, fomos para o almoço. Otto sentou-se em frente à mim e chorou por algum tempo, em silêncio. Fiquei em dúvida sobre interferir ou não, mas decidi que me faria bem ajudar. Lhe ofereci minha mão e deixei que a segurasse pelo tempo que precisasse. Não era necessário falarmos a respeito. Eu apenas queria dizer que estava ali para ele. Que ele não estava sozinho.

Fomos então lavar a alma com um banho no lago. Foi o meu primeiro, mas o pessoal já havia se aventurado por ali. Foi um bom banho, mas melhor foi o banho de chuveiro que tomei na sequência. Assim, no meio do dia, calor, foi o melhor de todos o que havia tomado. Aproveitei para ficar ali por bastante tempo, curtindo o momento.

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