Monthly Archives: junho 2022

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Adeus

Capítulo 27

Encontrei com Heidi na cozinha, que me disse que havia ficado preocupada comigo. Engraçado que na noite anterior eu pensei sobre o quão importante havia sido eu ter pedido ajuda quando precisei e, considerando essa hipótese, pensei que seria à ela que eu recorreria. Muito simpática, me explicou que estava acontecendo uma greve na cidade e que eu deveria me informar sobre como eu deveria fazer para ir ao aeroporto.

Ficamos mais de hora conversando, enquanto ela tomava seu café da manhã. Eu, no auge do enjôo da noite anterior, havia prometido à Noya Rao que faria jejum até as 18h, então estava só no chá de coca. Heidi me contou que ama o Brasil. Falou sobre Alto Paraíso de Goiás, que era um lugar que apresentou uma luz diferente em fotografias feitas pela NASA e é também onde existem bruxas muito sábias. Nada daquilo fazia sentido para mim, mas eu tava curtindo o papo e botando pilha para que me contasse mais.

Começamos a falar de cura e de neurociência. Ela me recomendou pesquisar sobre Joe Dispenza, um neurocientista que fala sobre o despertar de uma nova consciência e que, inclusive, estaria no Brasil em agosto. Ela também me contou que havia ido conhecer “John of God” e do quanto se surpreendeu com os crimes que João de Deus havia cometido. Por fim, insistiu muito para que eu experimentasse São Pedro, o tal cacto que, assim como a Ayahuasca, é conhecido como uma planta medicinal.

Ainda encontrei com Ingrid, a quem pude abraçar e agradecer pelo carinho e hospitalidade antes de sair para mais uma caminhada. Eu precisava matar um tempo até meu vôo, então fui atrás de um Centro Comercial Artesanal que havia visto na volta da Montanha Colorida. As pernas continuavam doendo muito, mas teria alguns vôos pela frente e entendia que a caminhadinha poderia me fazer bem.

Em função da greve, muitas lojas estava fechadas, então acabei comprando algumas coisas pelo Centro mesmo. Ainda assim, foram mais de 6km pela cidade. A passos bem pequenos e na velocidade lesma cansada, mas fui. Pequei um Uber para o aeroporto e consegui antecipar meu vôo de Cusco para Lima. Sabia que em Lima haveria um lounge da One World onde eu poderia me abancar antes do vôo.

A despedida mais incrível que eu poderia pedir me foi oferecida pela paisagem vista durante todo o trecho. A magnanimidade dos Andes e os cumes despontando acima das nuvens criavam imagens que dificilmente irei esquecer. Sorri, enquanto agradecia por essas férias tão leve quanto intensa, tão dolorida quanto feliz, tão despretenciosa quanto enriquecedora. Aquela pontinha da montanha era eu, minha vida, se negando a ficar no mundo dos homens, e buscando meu lugar em dimensões que poucos acessam. A montanha era eu na força da sua estrutura, com os pés firmes no chão, mas com os sonhos bem altos, sem limites. Era hora de testar as asas e ver até onde meu vôo me levaria.

O pesadelo da Montanha Colorida

Capítulo 25

Quando cheguei na Casa da Ingrid só conseguia pensar no que seria de mim no dia seguinte. Havia combinado com o Nathan de irmos à Montanha Colorida e a Ingrid já tinha organizado tudo. Respirei fundo, confirmei com o Nathan e rezei para acordar melhor no dia seguinte. O Nathan ainda me disse que havia passado bem mal o dia, que a altitude o tinha pego de jeito. Ainda cansada, decidi sair para jantar. Afinal, eu só havia almoçado às 11 da manhã e teria que madrugar no dia seguinte.

———

Eram 4h30 quando recebi uma mensagem do Nathan desistindo do passeio. Dizia que havia passado boa parte da noite acordado, com enjôo e vômito. Eu queria desistir também, mas decidi encarar e, às 5h30, estava pronta, esperando pelo ônibus que passaria para me buscar.

Assim que encontrei um lugar, fechei o olho e voltei aos sonhos. Sabia que andaríamos por volta de duas horas até a cidade de Cusipata, onde pararíamos para tomar um café da manhã. Estava eu sozinha, em um grupo de aproximadamente 30 pessoas. Sentei ao lado de uma Equatoriana simpática, mas que pouco conversava. Agradeci aos céus por essa dádiva. O café da manhã aconteceu numa casa meio abandonada. Uma espécie de armazém vazio + mercadinho oportunista + duas mesas compridas com pão e manteiga. Depois ainda apareceu uma mini fatia de omelete.

Comi o pão com manteiga e logo lembrei que ainda não poderia comer nenhum derivado de leite. Dor de barriga na certa. Comi o omelete, tomei um chá de camomila e voltei para o ônibus. Seriam mais uma 1h15 de viagem até o pé da montanha e cada minuto de sono contava.

A Montanha Colorida fica à 4,5 mil metros de altitude, com um trecho final que chegava à 5 mil. O oxigênio ali, é equivalente a 50% do que temos disponível a nível do mar. E isso a gente sente logo na chegada. A sensação é péssima. Puxa o ar e ele não vem. O coração acelera. O corpo sente o cansaço mesmo sem se mexer. E para piorar, olhei para frente e vi que a trilha era longa e bem hard core. “Por que eu fui inventar de descer Machu Picchu a pé? Por quê?”, era só o que eu pensava.

Comecei a subida, devagar e sempre. A trilha era bem disforme e cheia de obstáculos, então era preciso ficar atenta. Olhava para a frente e sentia que o fim nunca chegaria. A cada distância percorrida, um tempo para descansar. Mas era só dar os primeiros passos de novo para  se sentir no final de uma maratona. Devo ter caminhado perto de um quilômetro quando decidi que alugaria um cavalo para me ajudar no trajeto. Eu havia lido à respeito. Existia esse serviço, ainda que os bichinhos não fossem até o fim, mas a maioria das pessoas desencorajava. Do que eu havia lido, depoimentos de cavalos cansados que até se ajoelhavam em função da exaustão física. Eu, claro, havia decidido ir com minha próprias pernas. Mas essa decisão não durou muito tempo.

A verdade é que na frente do cavalo, vai uma pessoa “dirigindo”. Ou seja, se o cavalo tá cansado, pode apostar que tem sereshumaninhos cansados também. Assim, achei, ou quis acreditar, que nenhum animal seria exposto a um trabalho além do seu limite, já que a medida era exatamente o limite de um ser pensante. Ainda assim, fiz o caminho todo conversando com meu cavalinho e fazendo carinho no pescoço e nas orelhas. Eu precisava dele naquele momento e ele precisava me perdoar por isso.

Quando o moço indicou que eu descesse, olhei para a frente e não pude acreditar na incrível subida que teria que encarar. Era tão íngreme que haviam cordas para que pudéssemos ajudar as pernas com os braços ao mesmo tempo em que poderíamos tentar manter o equilíbrio. Foi muito sofrido! A parte boa, no entanto, são as amizades que se faz nos momentos de desespero. Claro que os bem preparados passavam lotados rumo ao cume, mas entre os mortos-vivos, muito apoio moral e camaradagem. Uma moça inclusive fazia um discurso, entre tentativas de encontrar oxigênio, dizendo que estava orgulhosa por termos todos chegado até ali.

Por fim, cheguei ao topo. Não conseguia admirar a paisagem ou sequer procurar as tais sete cores da montanha. Eu precisava sentar e tentar recuperar o fôlego. As pernas tremiam, as mãos tremiam, meu corpo doía e eu sentia vontade de desabar no choro ali mesmo, aos pés da turistada faceira por ter chegado até ali. Logo lembrei da minha quinta Cerimônia e do quanto eu havia entendido que precisava respeitar meu corpo e meus limites, e o quanto eu estava fazendo tudo errado de novo.

Finalmente levantei. Olhei para a Montanha e para toda a sua complexidade, sorri, e entendi que era hora de voltar.

A descida me exigia menos dos pulmões, mas ainda mais das pernas, já incrivelmente doloridas do dia anterior. Agarrada à corda, dava passos curtos e, por vezes, escorregadios. Uma menina atrás de mim me encorajava. Estava seguindo meu ritmo. Juntas iríamos até o fim. Me sentia como se estivesse bêbada, sem controle das pernas, trôpega.

Ainda assim, entendi que não precisaria de cavalo para a volta. E não demorou muito para que eu entendesse que eu havia entendido errado! Eu sentia muita dor. Queria me jogar no chão e ficar por ali mesmo. Sentava um pouco sempre que dava, mas ao mesmo tempo, queria chegar logo de volta e me acomodar no ônibus. Mas aquilo parecia interminável. A cada curva na montanha, mais trilha e mais trilha. E nunca enxergava o fim. Eu rezava, tomava água, entoava mantras. Pedia ajuda à Noya Rao para que me desse forças, mas o que ela me deu foi o gosto da medicina ainda mais forte.

Eu estava vivendo tudo aquilo de novo. O terror da falta de ar, do enjôo, da dor, do medo. Cambaleava na terra vermelha, agora consciente do quanto eu havia falhado comigo mesma. Me transportei para aquele momento na Maloca, em que Anna segurava a minha mão e me guiava na respiração, para que eu me acalmasse e recuperasse o fôlego. Repetia cada movimento, revivia cada recomendação. E, aos poucos, um passo de cada vez, fui chegando mais perto da chegada. Quando finalmente cheguei no ônibus, mal consegui sentar.

O mal estar era tão forte, que só o que eu podia fazer era dormir. Não teria forças nem para levantar e sair do ônibus caso precisasse vomitar. Novamente, me concentrei na respiração, contada cada inspiração e cada expiração. Aos poucos fui adormecendo.

Quando chegamos de volta no lugar onde tomamos café da manhã, dessa vez para almoçarmos, tudo o que eu queria era permanecer no ônibus. O simples ato de levantar da poltrona e, pior ainda, descer as escadas do ônibus, me fizeram o estômago revirar. No almoço, comi algumas colheradas de sopa, tomei um chá mate doce, e fui para a rua tomar um ar. Por sorte, não demorou muito para que todos estivessem de volta e para que eu pudesse voltar ao sono.

Nesse dia eu não consegui subir a pé pelo Centro até a Casa da Ingrid. Peguei um táxi, tomei um banho e caí direto na cama, de onde eu só saí na manhã do dia seguinte.

Capítulo 26

Nathan, Tatiana e Elyse haviam ido ao Vale Sagrado e me enviavam mensagens para que fosse para lá também. Eu não queria me ver obrigada a nada, queria apenas descansar. Assim, fiquei em Cusco mesmo. Só saí do quarto para almoçar, e ainda assim, com muito esforço. Antes de sair, conheci Heidi, uma pessoa do mundo. Deve estar na casa dos 60 anos, se disse havaiana, apesar da pele clara, dos olhos azuis e dos cabelos loiros. Ainda assim, disse que vive no mundo há mais de cinco anos, então não se considera de um lugar só. 

Depois do almoço, resolvi dar uma caminhada de leve pela cidade. Precisava encontrar uma farmácia para comprar um relaxante muscular e dar uma soltada na musculatura que tava toda rígida e contraída. Na Plaza de Armas, uma surpresa agradável. No mês de junho se comemora o aniversário de Cusco, junto com o solstício de inverno. E como parte das celebrações, é realizado um campeonato de dança entre todas as escolas da cidade, públicas e particulares. Me diverti muito com as danças, especialmente dos pequenos, que mostravam concentração e entrega à coreografia.

Fiquei ali, sentada em frente à igreja, assistindo a cada uma das turmas. Um dos policiais, sempre muito simpáticos, foi quem me explicou sobre o que estava acontecendo.

Com o relaxante muscular tomado, voltei para a pousada. Tinha ideia de dar uma volta à noite. Havia pesquisado alguns lugares interessantes para dançar e conhecer gente, mas Noya Rao me colocou no meu lugar. Se eu ainda não havia aprendido a cuidar de mim, ela iria fazê-lo a todo custo. Primeiro veio um enjôo super forte e, na sequência, uma diarréia sem fim. Fiquei horas entre o quarto e o banheiro, até que finalmente dormi, de roupa e tudo, sem banho e sem escovar os dentes. Só acordei no dia seguinte.

Machu Picchu

Capítulo 24

Era chegado o grande dia. Era 5h15 quando cheguei na fila do ônibus que me levaria à Machu Picchu. Tive que aguardar até às 6h30 para embarcar, mas ao menos eu estava na primeira saída do horário das 7 horas, o que me permitiu sentir Machu Picchu só para mim. Quem não quisesse pagar a subida de ônibus poderia fazer a trilha morro acima e, enquanto subíamos, avistávamos alguns corajosos. A subida é forte, íngreme e longa. Os que optam por esse trajeto certamente chegam bem cansados lá em cima.

Por fim, entrei. É inexplicável a sensação de entrar numa cidade considerada sagrada. Toda sua história, toda sua arquitetura, toda a sua beleza… tudo o que aquele lugar representa faz todos os pelinhos do corpo se arrepiarem. E para que a coisa fique ainda mais impactante, a construção fica entre montanhas majestosas e de uma natureza incríveis. É realmente de tirar o fôlego.

Resolvi não contratar guia. Queria caminhar pelas ruínas ao meu tempo, tentando entender por mim mesma o que cada cantinho teria a me dizer. A história eu já conhecia, eu queria mesmo era sentir. E assim eu fui…

A caminhada não é fácil. São muitos sobes e desces em degraus altos e desnivelados. Ainda que o local ficasse mais baixo que Cusco e, assim, facilitasse um pouco a respiração, é preciso um bom preparo físico para encarar cada subida. Para quem tem pernas curtas, então, é certeza de dor no dia seguinte. Mas com ou sem dor, fui andando e absorvendo toda aquela beleza enquanto admirava as construções e a grandiosidade de tudo aquilo.

Não achei que tivesse muito turista, ao menos não naquele horário, ou não seguindo meus passos não convencionais para quem visita o sítio arqueológico. Assim, fiz belas fotos e parei em cada lugarzinho que tinha algo a me dizer e contemplei a paisagem. Ainda antes de sair, encontrei um cantinho meio afastado, onde pegava um raio de sol. Sentei ali e meditei, com o intuito de captar um pouco daquela energia, mas também de dedicar minha atenção plena como forma de agradecimento pela experiência que eu estava vivendo.

Quando saí do parque, percebi que havia passado duas horas por ali. Olhei para a placa informando sobre a trilha e decidi que desceria a pé. Descendo logo nos primeiros degraus, encontrei um casal subindo. Perguntei se a trilha valia a pena. “Sim. Não é muito difícil. Se vai devagar, descansando no caminho, é tranquilo”, disse o moço, num vermelhão. Falei que tinha dúvidas em função das minhas pernas curtas, mas a moça me encorajou, mostrando que ela sofria do mesmo problema e havia chegado até ali. “É uma descida, afinal de contas, não tem como dar errado!”, pensei eu enquanto colocava algumas músicas de meditação e mantras que eu havia baixado na noite anterior.

O grande problema de se optar pela trilha, é que não tem volta. Não dá pra parar um ônibus no meio do caminho, nem para cima, nem para baixo. E posso dizer que já na metade da trilha eu percebi meu erro. De fato, os degraus era muito altos e logo minhas pernas começaram a sofrer. O tornozelo sentia o primeiro impacto, que passava pela canela, panturrilha e joelhos, mas acho que o pior ainda era nas coxas. Eram elas que seguravam o corpinho até que o pé da frente alcançasse o chão.

Parei algumas vezes no caminho para descansar, mas nada impediu a tremedeira que deu quando finalmente cheguei na ponte por cima do rio das Águas Calientes. Logo ali era a guarita de controle para subida ao Parque. Me sentei por ali mesmo e fiquei, com a esperança de que em breve recuperaria meus movimentos para seguir a rota, agora no plano (ao menos era assim que eu lembrava).

Quando decidi seguir, percebi que havia cometido um grande erro e que essa visita à Machu Picchu seria lembrada e sentida no corpo por alguns dias. A parte plana não era nada plana. E também não era nada curta. Algo perto de 3km, morro acima, me arrastando conforme dava. E minha pousada ficava no topo do morro, lá em cima. Quase a última. Resolvi parar no meio do caminho e almoçar. Eram 11 horas. Eu estava caminhando há duas, acordada há mais de seis. Achei que fazia sentido.

Já no trem, de volta à Cusco, voltei a sentir a euforia que havia sentido na ida. E ela só aumentou quando entrei no ônibus em Ollantaytambo. Sentia como se já tivesse vivido aquele dia de alguma forma, em alguma vida, dimensão, espaço e tempo.

Uma nova fase

Capítulo 21

Era chegado o tão esperado momento de retornar à civilização. Mochila feita, mesmo que a meia luz, aquele tchau para aquela que havia sido minha casa por doze dias e logo estávamos nós no barco, lago Cachiboca acima. A divisão foi a mesma da ida, então fomos Elyse e Felix, Tatiana, Adelina e eu. Chegando em Pucallpa, nos despedimos com planos de ainda jantarmos juntos. Fui sozinha no meu mototáxi para o hotel onde havia me hospedado na chegada à cidade.

O caminho no táxi foi interessante. O motorista não pareceu uma pessoa muito encabulada, fazendo muitas perguntas e comentários sobre tudo o que eu dizia. Chegou a perguntar se eu era casada e tinha filhos e, quando eu disse que não, resolveu me dar uma palestra sobre o tema. Acabei encerrando o assunto logo depois.

Chegar no hotel foi divino. Abrir a mochila, espalhar as roupas, conectar o telefone pela primeira vez e tomar um banho daqueles de lavar a alma. Reorganizei tudo com calma, tentando colocar nos lugares mais inacessíveis as peças de roupa suja que não seriam mais usadas. Respondi algumas mensagens, dei aquele alô para a família e desci para almoçar.

Obedeci as restrições indicadas por Juanita, mas ainda assim, o corpo acusou que dali para a frente, as coisas seriam diferentes. Um fetuccini com camarão e um molho picante, junto à uma limonada fresca “pero sin hielo”, foram suficientes para que eu não sentisse mais fome o dia inteiro. A tarde ainda fui caminhar por Pucallpa. Estava há algumas quadras do Mercado No. 2, uma espécie de mercado público municipal bem tradicional dali. Aproveitei também para passar no banco e sacar um dinheiro para os próximos dias.

Quando Nathan me enviou a mensagem sobre o restaurante para o jantar, meu telefone resolveu parar de funcionar. Tentei recuperá-lo de todas as formas, mas só consegui uma resposta, ainda que sem nada do meu histórico, apps e dados, às 22h30. Claro, acabei não indo ao jantar, mas estava ok com isso. O vôo para Cusco sairia às 6h30 do dia seguinte, então precisaria acordar bem cedo.

Capítulo 22

Depois de madrugar para chegar em tempo do vôo às 6h30, e de aguardar por algumas horas no aeroporto de Lima, finalmente cheguei em Cusco. De Pucallpa à Lima viajei junto com Anna, Nathan e Tracy, que em Lima partiu de volta para a casa. Quando o avião estava para aterrissar em Cusco, percebi que Elyse e Felix estavam no mesmo vôo. Tatiana também deveria estar, mas Elyse havia se perdido dela e não tinha certeza se ela havia conseguido embarcar em tempo. Aguardamos um tempo e, como ela nunca apareceu, dividimos um táxi para nossas pousadas. Eram lugares diferentes, mas ambos no Centro da cidade.

Logo de cara, já me apaixonei pelo lugar. Construções de pedra, meio mal acabadas, ruelas superestreitas, uma arquitetura que não parece com nada que já havia visto. A impressão só melhorou quando finalmente cheguei na Casa de Ingrid, onde me hospedaria pela noite. Muito simpática, Ingrid me recebeu com um abraço carinhoso. Me mostrou a casa, meu quarto, o banheiro e ficou um tempo conversando sobre os costumes locais. Me disse que a região não era perigosa, mas que o ideal é que eu não ficasse na rua além das 22h30. Ainda me fez um chá de coca, quando percebeu que me senti um pouco tonta com a altitude. Me serviu e disse para que eu descansasse um pouco.

Havia combinado com a Elyse de encontrá-la no Green Point, um restaurante vegano muito bem recomendado por ela. Assim que consegui recuperar o fôlego, andei até lá. A cada passo, me apaixonava mais e mais pela cidade. E o restaurante era tudo o que eu precisava. Era já passado das 14 horas, mas ainda serviam um menu especial de almoço. Salada a vontade, uma sopra de batatas e aveia, um prato de ravioles recheados com moranga e ainda uma sobremesa de manga. A comida estava deliciosa. “Assim até dá para ser vegana”, comentei com Elyse.

Depois Nathan se juntou à nós e, mais tarde, Tatiana. Demos uma caminhada pelo Centro e retornei à pousada para dar uma descansada e testar o chuveiro, que foi plenamente aprovado. Logo Anna enviou uma mensagem falando sobre um mini show que um amigo faria no Centro à noite e nos convidando para ir. “Ele vai tocar Ô Chuva”, me disse como argumento para que eu fosse. Nathan e eu decidimos dar uma caminhada por ali, indo até a Plaza das Armas e entrando nas várias lojinhas com peças típicas e obras de arte. Jantamos por ali, no restaurante Morena. Ali experimentei a chincha, uma bebida fermentada de milho bem típica da região. Saímos do restaurante e andamos em direção ao bar, apesar das contra indicações do segurança do restaurante que disse ser um caminho perigoso. “He doesn’t know you have a badass guy watching over you (Ele não sabe que tem um cara muito foda cuidando de ti)”, Nathan disse. Fato, nada melhor do que caminhar à noite acompanhada de um ex-sniper do exército americano.

Era uma subida íngreme e tive que parar algumas vezes para recuperar o fôlego e ver se meu coração saía da boca e voltava para o lugar dele. É complicado quando tentamos puxar o ar e ele não vem. Mas de pouco em pouco, cheguei lá. Era um bar bem simples, típico da região. Logo chegou Anna, super feliz de nos encontrar. Nos apresentou o músico, um boliviano cheio de presença, que a havia ensinado a cantar a tal da música que ela nunca mais parou de pedir que eu cantasse. Todos muito simpáticos e carinhosos, cumprimentam com abraços apertados e beijos, assim como nós brasileiros. Anna me fez comer coca por três vezes, ainda que eu dissesse que estava bem e que não havia gostado tanto assim de mastigar as folhas. Obedeci.

Capítulo 23

Acordei bem cedo no dia seguinte. Estava feliz com Cusco, com a pousada e com o dia de ontem. Nathan logo enviou mensagem e o convidei para um café da manhã antes que eu fosse até o local de partida para minha viagem à Machu Picchu Pueblo, ou Águas Calientes. O único lugar aberto no domingo pela manhã era o próprio Green Point. Sorte a nossa, já que além da comida boa, as opções veganas estavam permitidas na manutenção da dieta da Noya Rao. Nathan me trouxe de presente um saco de farinha de coca. Vibrei.

Meu nariz havia desistido de trabalhar e estava totalmente trancado. “De que serve um nariz se não há oxigênio?”, pensei comigo mesma. Assim, economizando o pouco ar que entrava, fui caminhando em direção ao escritório da Inka Rail de onde sairia uma van até Ollantaytambo. Lá pegaríamos o trem até Machu Picchu Pueblo. O lugar era bonito e me fez pensar que havia escolhido bem entre tantas opções de agências e passeios. As pessoas que chegavam eram divididas entre duas vans e as 10h15 em ponto, saímos.

O trajeto mal começou e me vi com um sorriso no rosto que insistiu em permanecer por ali. A cada curva no meio da cidade e depois, a cada descida por entre as montanhas, meu coração se enchia de alegria. Eu estava sentindo a medicina, não sabia se Noya Rao ou Ayahuasca, mas era intensa e poderosa. Era como se eu pertencesse àquele lugar. Me sentia cheia de amor. Ria sozinha enquanto as pessoas se balançavam tentando fazer fotos.

Mandei uma mensagem para Anna falando sobre minhas sensações. Ela respondeu com um áudio: “Senti a mesma coisa quando fui a Machu Picchu. Ir à esse local sagrado é como ir ao encontro de um Maestro ou Maestra. Sentimos a energia e a proteção. Tu é uma pessoa com esse poder, imagino como deva estar se sentindo e fico muito feliz por isso”. Era isso. Eu estava sendo atraída por uma força invisível e me sentia indo diretamente em sua direção.

A viagem de trem é linda, lenta e cercada por muito verde. Um abraço de Noya Rao. Não fossem os dois brasileiros no banco ao lado, que não pararam de falar um minuto, teria sido um momento mágico. Mas com os recentes problemas que tive com meu telefone, nem colocar uma música eu consegui. Ainda assim, foi uma viagem muito gostosa. Recebemos uma bandeja com almoço, que continha um wrap de frango, uma barra de proteína, uma bergamota e um cacau. Achei chique.

Wilson, gerente da pousada Samananchis, em Machu Picchu Pueblo havia me enviado um e-mail perguntando o horário do meu trem pois me esperaria na estação. Mas quando cheguei, não havia ninguém com meu nome por lá. Felizmente ele logo chegou. Fomos caminhando até a pousada enquanto ele me explicava tudo sobre onde eu deveria comprar os tíquetes de amanhã e mostrando onde pegar o ônibus.

A cidade é incrivelmente encantadora. Pequena, cheia de lojas e restaurantes que podem às vezes ser um pouco agressivos na tentativa de conquistar os turistas. Nada que um “no, gracias” com um sorriso no rosto não resolva. Da pousada, fui direto comprar o que precisava para amanhã. Não haviam mais ingressos para as seis da manhã, então tive que comprar para as sete horas. Os ônibus não têm hora, então vale quem chegar primeiro na estação. Fiquei apreensiva. Wilson me recomendou que saísse ao menos uma hora antes.

Caminhei por tudo. Fotografei mais naquele dia do que em toda a viagem até ali. Da mesma forma, fiz mais compras do que já havia feito. Tudo ali me encantava. As cores, as pessoas, o rio, as esculturas espalhadas pela cidade. Por vezes era tomada por uma emoção forte, o que me fez escolher um dos muitos bancos espalhados e fechar os olhos por ali, sentindo a vibração e as mensagens que estava recebendo.

Em respeito aos limites

Capítulo 18

O dia estava ótimo, a começar pela última yoga do retiro, finalizando com o chakra do terceiro olho e o de cima da cabeça. Acho que o poder conversar fez bem ao grupo e, especialmente à mim. Ao mesmo tempo, sei que ter tido o silêncio no início foi importante para ouvirmos a nós mesmos e nos reconhecermos como indivíduos antes de nos reconhecermos como grupo.

Estava muito quente. Acho que próximo aos 40 graus. Pela manhã os índios Shipibo trouxeram roupas, tapeçarias e artesanatos, formando um pequeno mercado informal. Optei por não comprar nada, mas o grupo saiu bem colorido. Aproveitei o sol e o calor para um banho de lago. Devo ter queimado um pouco as bochechas, mas foi muito refrescante. Logo, Tatiana e Nathan se juntaram a mim.

O almoço pareceu mais gostoso, mas pode ter sido pela ótima conversa que tivemos enquanto comíamos. Rimos e nos divertimos com as histórias, experiências e visões de cada um.  Descobrimos que ontem havia sido aniversário do Otto. Que bom que, mesmo sem sabermos, ele havia tido um bom dia. 

Tivemos mais uma rodada de Baño de Amor, brindada ao final por uma chuva esparsa que trouxe um pouco de frescor, ainda que logo tenha parado. As folhas do banho seguiram comigo por um tempo e, a cada ida ao banheiro, deixava um rastro verde.

Mais tarde, Juanita nos guiou pelas recomendações pós dieta. Ela iniciou explicando que havia cuidado de nós por todos esses dias, fazendo uma limpeza e nos auxiliando na conexão com Noya Rao. Agora chegara a nossa vez de cuidar dos nossos próprios corpos. Segundo ela, se não cumpríssemos as recomendações, existia a possibilidade de nosso corpo responder com vômito e diarréia. Ou algo mais sério! E como ela não estaria conosco, não poderia nos ajudar. Logo seguiu com as instruções:

  • Dois meses sem sexo
  • Um mês sem carne vermelha
  • Um ano ao menos sem carne de porco, mas preferia que nunca mais comêssemos
  • Uma semana sem peixe cru, incluindo ceviche
  • Duas semanas sem álcool
  • Uma semana sem leite e derivados
  • Uma semana sem óleo ou frituras
  • Uma semana sem comidas e bebidas fermentadas
  • Uma semana sem bebidas ou comidas geladas
  • Um a dois meses sem outras plantas medicinais
  • Três a quatro meses sem marijuana
  • Um a dois meses sem outros psicodélicos

Anna reforçou ainda que deveríamos ouvir nosso corpo e nossa intuição sobre alimentos que fôssemos ingerir, e sugeriu que aqueles que desejamos muito, fossem evitados por um pouco mais de tempo. A noite, durante a quinta e última Cerimônia de Ayahuasca, a dieta seria fechada pela Maestra, que cantaria Arkanas, que segundo ela são canções para proteção.

Senti por saber que sairia do Peru sem comer ceviche e carne de alpaca, mas só de pensar em algumas das coisas que foram mencionadas, meu estômago se revoltou. Saí da Maloca direto para o banheiro, onde pude já perceber os efeitos que qualquer infração dessas teria no meu corpo. Fezes, vômito e menstruação. Tudo junto. Melhor seguir à risca.

Fui para a Cerimônia ainda sem saber se tomaria ou não a medicina. Estava me sentindo um pouco enjoada e tinha muito forte na minha cabeça a lembrança da última vez, quando pensei comigo mesma que deveria lembrar daquela sensação para que eu não repetisse a dose. Quando falei sobre isso com Anna pela manhã, ela disse que eu poderia tomar menos quantidade, ou participar da cerimônia sem tomar, como fizera Tatiana na última.

Capítulo 19

Minha primeira intenção com o retiro, era aprender a ouvir minha própria voz. Sabia que eu tinha muito o que dizer a mim mesma, mas por algum motivo, essa voz andava cansada, fraca, quase apagada. Assim, achei que era hora de não me jogar com tudo, de não ir até o limite, e mais do que isso, não ultrapassá-lo. Ouvi meu corpo, minha voz e a mensagem de Noya Rao e optei por não tomar Ayahuasca na última Cerimônia. 

Não foi uma decisão fácil. Não queria deixar de viver a experiência e os aprendizados que ela traria. Ao mesmo tempo, sabia que era a decisão acertada.

Quando chegou minha vez, fui até o centro, sentei com as pernas cruzadas e informei a Elio que não tomaria a medicina naquela noite. Sem julgamentos, ele pediu que eu encostasse com o dedo na bebida e fizesse uma marcação, como um risco, em minha testa. Assim eu fiz e retornei ao meu lugar.

Mesmo sem ingerir Ayahusca, senti os efeitos como se houvesse ingerido. Sentia enjôo, ânsia de vômito e não confiava no meu intestino. Fiquei lá, deitada, no escuro e no silêncio. Pensava, “não é possível que ainda assim, serei a primeira a vomitar de novo”. E assim foi. Mas dessa vez preferi ir ao banheiro, pois não tinha certeza de por onde sairia o que eu precisava botar para fora.

Retornei e logo Juanita começou a entoar seus ícaros e cânticos. Dessa vez, como ela havia dito, as canções seriam diferentes, as Arkanas. Em Shipibo, ela encerrava a dieta, pedindo a proteção eterna da Noya Rao. Falava em escudos e espadas, além de um manto de flores e da pintura indígena no corpo que nos protegeria daqui para a frente. Como nas outras vezes, ela passou um por um, cantando em frente a cada um e, ao final, dando o tradicional banho de cuspe com Água de Florida.

Foi uma noite de reflexão e muita gratidão por tudo o que eu estava vivendo, além de todo o aprendizado e limpeza promovidos nessas duas semanas. Refleti sobre o caminho que havia me trazido até ali. Entendi que eu não havia procurado a Ayahuasca, mas ela a mim. E sou grata por esse encontro.

Logo, encostei meu braço na testa e passei a Ayahuasca para ele. Depois acabei passando o braço no cabelo e tudo ficou grudento. Ri comigo mesma da patetice e do espírito infantil que me havia acometido. Fiquei feliz por despertá-lo. Parecia que Juanita estava na mesma vibração e, ao final, ria e cantava enquanto Ana sugeria algumas músicas ao grupo.

Minha música final foi Banana Pancakes, do Jack Johnson e pude contar com a ajuda da turma toda. Não sem antes perguntar a Tracy se meu chapéu mágico estava na minha cabeça, para a diversão de todos. Durante à tarde, ela havia dividido que adorava quando eu cantava e que, quando olhava para mim, me via com um chapéu pontudo, como se fosse uma pequena cabana em minha cabeça.

John pegou o violão quando foi sua vez e nos brindou mais uma vez com sua linda e doce voz. A energia estava alta. Ao final, me despedi de Elio, que pegaria um vôo em seguida, e fui para o meu Tampo encerrar minha noite.

Capítulo 20

O dia amanheceu bem quente mais uma vez. Encontrei com John na pia para escovar o dentes e ele foi dali para o lago. Certo ele. Eu não queria carregar roupa molhada na mochila, então decidi que hoje não haveria banho. Além do mais, o lago era meio barrento e a água estava bem rasa.

Peguei um Mapacho e fui para a casa central. Sentei na varanda e, aos poucos, outras pessoas foram chegando. Otto, Tracy, Adelina. As caras eram a mistura de todo dia pós cerimônia, cansaço com alegria, poucas horas dormidas, mas sono de qualidade, angústia e orgulho. Trocamos um pouco do que foi a experiência do dia anterior para cada um de nós. O café da manhã tinha sal, limão e até pimenta. Uma benção dos céus.

Tive oportunidade de conversar mais com a Tracy. Que menina espetacular. Quero muito poder recebê-la em minha casa um dia. Ficamos conversando por ali até a hora da roda de conversa. Mais uma vez, grandes aprendizados, mas mais do que isso, muita gratidão, a tudo e a todos.

Esperávamos ansiosos pelo menu do almoço. Torcíamos por peixe, mas teve frango. Mas o que de fato importava era o sal. Depois do almoço fiquei com Felix por quase uma hora enquanto Elyse subia na torre da caixa d’água para acessar a internet e reservar um vôo para Cusco. Na volta, pude conversar bastante com ela, conhecer sua história e as razões por ela estar buscando cura. É uma verdadeira guerreira. Senti sua dor, mas ao mesmo tempo, me senti inspirada por sua força e determinação.

Era o último dia do retiro. Me sentia feliz por voltar para a cidade, ao mesmo tempo que melancólica por deixar aquela rotina tão calma e tão focada em mim. Aparentemente esse sentimento era compartilhado por todos. Também havia a ansiedade por retornar ao dia a dia sem a certeza de conseguir manter os aprendizados que tive ali. Entendendo que teria que explicar como havia sido o retiro, ainda que as pessoas não conhecessem tudo o que havia me feito chegar até ele.

Mais tarde, recebemos Jess e Marcela, representantes da Alianza Arkana, que vieram apresentar o projeto. Elas trabalham com as comunidades indígenas dos povoados peruanos, com alguns objetivos voltados para a saúde e manutenção da cultura Shipibo. Sem auxílio do governo e sobrevivendo apenas com doações de pessoas físicas e algumas empresas, promovem workshops que vão desde o conhecimento das plantas, até prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou causadas por parasitas, como a anemia, por exemplo. Também fazem um trabalho de valorização do artesanatos e das técnicas de bordado, e ainda do idioma, que acaba se perdendo com cada vez mais índios indo para a cidade buscar um estudo de qualidade.

Antes do jantar, tivemos nossa integração final, focada na volta à rotina e na boa readaptação. Anna falou que deveríamos retornar devagar e, acima de tudo, entendendo que as outras pessoas, família e amigos não passaram pela experiência, então era bom mantermos a calma e a empatia, bem como nos resguardar um pouco com relação aos aprendizados. Mas antes, ela havia preparado um doce de cacau para comemorarmos o aniversário do Otto.

Ao invés de passar regras, Anna preferiu nos passar a palavra, pedindo que cada um sugerisse algumas práticas para um retorno não traumático à vida real. John foi o primeiro. Ele sugeriu que mantivéssemos um espaço em nossa vida para refletirmos e nos ouvirmos. Encontrar esse momento, diariamente, através da prática da meditação, da Yoga, de oferendas à Noya Rao ou outra atividade que seja do agrado. Já Tracy sugeriu usarmos algo, todos os dias, que nos permita lembrar do caminho de cura. Seja uma roupa, uma cor ou um acessório, algo que mantenha a experiência acessa em nossas mentes.

Adelina veio na sequência. Sugeriu mantermos o diário e a atenção às nossas próprias reflexões, além de cuidar com as grandes expectativas. Sugeriu que, da lista de coisas que queremos incorporar às nossas vidas, escolhamos uma ou duas. E só irmos adiante quando essa uma ou duas coisas houverem sido dominadas. Assim evitamos ansiedade e frustração. Nathan complementou falando sobre a importância de mantermos as relações. Comentou que era importante pedirmos ajuda, procurarmos ajuda, e que é na família e amigos que encontramos essas luzes.

Tatiana sugeriu que trabalhássemos para que a experiência seja cada vez mais integrada à nossa vida, para que ela não passe a ser apenas um momento recreativo. Ela também comentou sobre o poder da visualização, explicando que sempre que precisássemos, poderíamos retornar à floresta. Eu falei na sequência. Falei sobre a importância de entendermos o todo e, dessa forma, conseguirmos explicar para quem quiser saber que não foram apenas duas semanas. Que a o retiro fez parte de uma história que começou antes e que ainda segue por muito tempo. Expliquei que focar num segmento da história seria negligenciar nossa bagagem, nosso repertório, nossos traumas e vitórias que nos fizeram quem somos. E claro, falei ainda sobre a importância de sermos honestos e da mesma forma, pedir honestidade. “Quer realmente saber como foi?” ou “Não me sinto bem com essa atitude quando eu divido algo pessoal”, expliquei.

Otto foi o último e sugeriu associarmos a cura a um lugar, como a praia, por exemplo. Um local onde possamos nos conectar com Gaia, com Noya Rao e com Pacha Mama. Ainda comentou que a melhor forma de mudar qualquer coisa, é ser a mudança, mostrar que é possível, servir de exemplo. Anna concluiu falando sobre a importância de sermos felizes. Repetiu que o caminho de cura não precisa ser penoso ou dramático, que somos seres humanos e merecemos celebrar. E também nos permitirmos ter dias ruins. Também reforçou a importância de cuidar do corpo, fazendo exercícios e mantendo uma alimentação consciente. 

Lições da Aya

Capítulo 15

Minha quarta Cerimônia de Ayahuasca foi muito ruim. Mais uma vez, fui a primeira a vomitar e, dessa vez, sentia chegar também uma diarréia. Fui ao banheiro, mas foi só eu sair da Maloca para perceber que minha pressão estava no pé. Achei que fosse desmaiar. Estava muito zonza e enjoada e estavam todos ainda em silêncio, concentrados em suas experiências individuais.

Me joguei de joelhos no colchão e peguei o pote de vômito no colo. Sentia que eu iria cair a qualquer momento. Eu precisava pedir ajuda, mas sentia vergonha. Tínhamos recém bebido a medicina. Estavam todos deitados. Quem viria me ajudar? Respirei fundo e bati três vezes no chão com a força que eu ainda dispunha. Anna logo veio ao meu encontro. “I’m gonna faint (Eu vou desmaiar)”, eu disse. Ela pediu que eu repetisse. “I think I’m gonna pass out (Eu acho que vou apagar)”, repeti.

Anna me segurou, ali sentada como estava e pediu que eu tomasse água. Tomei o maior gole que consegui e deitei. Meu mundo girava como se eu tivesse ingerido duas garrafas de Tequila. Comecei a suar frio e minhas mãos começaram a ficar dormentes. Ana pegou minhas mãos, me orientou para que eu respirasse profundamente e devagar e, ao mesmo tempo, começou a realizar a Soplada sobre minha cabeça, meu rosto, meu peito, todo o meu corpo. Fui recuperando o fôlego. Então veio a Água de Florida. Ana molhou suas mãos e colocou bem no meu nariz para que eu respirasse. Me sentia melhor, mas ao mesmo tempo, precisando de ar puro por causa da fumaça do Mapacho e do perfume. Pensava que deveria ter comido sal durante o dia. Já estava sentindo falta e conhecia bem meu histórico de pressão baixa. 

Fui melhorando aos poucos e, depois de algum tempo, Anna retornou para o seu lugar. Mas logo a sensação de desmaio voltou e bati novamente três vezes no chão. Anna veio e, mais uma vez, me orientou para que eu controlasse a respiração. Logo, meu corpo começou a tremer. Primeiro as mãos, depois braços, ombros, costas. Especialmente o lado direito. Peguei a mão da Anna. Estava assustada. Pedi desculpas, me sentia culpada por monopolizá-la. “Não precisa pedir desculpas, estou feliz por estar aqui”, ela respondeu. Comecei a chorar. O tremor não parava. Fui sentindo como que um ataque de pânico.

Pensava se havia danificado minhas funções neurológicas de alguma forma, se estava fazendo tudo errado, se havia comprometido minha saúde. Era aterrorizante sentir o corpo se movimentar de forma involuntária. Perguntei à Anna porque eu estava tremendo. “É perfeitamente normal”, explicou ela, “é um descarrego de energia que precisa sair. Deixa tremer”. Não soltei sua mão até que me acalmasse e os tremores se tornassem mais espaçados.

Tomava muita água. Queria que o efeito passasse, mas consegui com isso foi uma vontade de ir ao banheiro. Anna me acompanhou e lá eu fiquei por um certo tempo. Sabia que estava botando a Ayahuasca para fora e, com ela, uma carga que eu não queria para mim. Quando retornei, estava mais tranquila e consegui relaxar, deitada no colchão.

Quando Maestra Juanita chegou para cantar em frente a mim, meu corpo voltou a tremer mais uma vez, especialmente o lado direito. Fiquei ali, sentada em frente à ela, e deixei tremer. Eu estava em segurança e precisava de alguma forma descarregar essa energia que estava em mim. Cheguei a pensar em levantar e começar a dançar, mas fiquei com medo de derrubar alguém, alguma coisa ou eu mesma cair.

Juanita passou e os tremores seguiram, cada vez mais esparsos. Deitei novamente e ouvi ela passando por cada um dos quatro que vinham depois de mim. Eu queria que aquela Cerimônia terminasse. Visões vinham, mas tinha medo, então as bloqueava. Não me rendi como talvez devesse ter feito para matar o que precisava ser morto. Não deu. Maestra seguia cantando e parecia que aquilo nunca teria fim. Até que veio o silêncio e Anna foi perguntando, um a um, sobre como estavam se sentindo.

Quando chegou minha vez, contei que havia passado por maus bocados, mas que agora estava bem. Cantei “Me Cura de Mim” e depois Anna pediu que eu cantasse novamente “Ô chuva”. Parece que cantar realmente ajuda. Ao final, seguimos cantando, todos juntos. Primeiro saíram Elio e Juanita, depois Anna. Ficamos nós ali, cantando. Um tempo depois me despedi de todos e retornei para o meu Tambo. Precisava ir no banheiro e já queria aproveitar a viagem. Mais uma vez, dormi profundamente.

Capítulo 16

Acordei sentindo ainda a pressão baixa. Não era exatamente um enjôo, mas uma falta de energia. Na roda de conversa, contei sobre minha experiência, mas que ainda não entendia o significado dela. Disse que lembrava de um momento em que pensei para mim mesma: “Lembra bem desse sentimento para que tu não tomes a medicina na próxima Cerimônia”. Prometi que contaria assim que compreendesse o aprendizado que deveria tirar da noite anterior.

Anna então me explicou que os tremores são perfeitamente normais e são sintomas de que tinha muita energia em mim que não era minha. Falou que poderia ser inclusive herança genética, de várias gerações, que chegam pra gente através do DNA. Sugeriu que eu não buscasse entender, que apenas aceitasse que foi o que foi, e que o que precisava sair, havia saído. Elio reforçou falando da minha força e segurança. Respondi: “Mas entrei em pânico!”. Ele me explicou que, ainda assim, eu tive calma para controlar minha própria respiração e me acalmar. Elio acabou compartilhando que também experimentou muita tremedeira durante a Cerimônia. John também.

Conversando com John à tarde – hoje terminou o silêncio e pude então conhecê-lo melhor – lembrei do Espiral do Encontro e de um exercício que fizemos. De acordo com o Bernardo, que facilitou o encontro, os animais não guardam rancor ou raiva de outros animais pois chacoalham toda a negatividade depois de uma briga ou fuga. Assim, ficamos uma música inteira chacoalhando para tirar essa energia do nosso corpo. Talvez eu deva mesmo tremer mais.

Capítulo 17

Usei um pouco de sal no almoço e foi uma bênção. Senti a energia voltando ao meu corpo. Só não salguei tudo pois fiquei com vergonha, mas vontade eu tinha. Teve peixe e estava delicioso. Disseram que havia sido feito pela própria Juanita.

A tarde teríamos um Baño de Amor. Era uma mistura de plantas, preparadas pela Maestra, que traria amor, abundância, boas energias. Um a um, sentamos no banquinho em nossos trajes de banho para que Juanita despejasse sobre nós aquela água perfumada. A orientação era para que não desgrudássemos do corpo as folhas e não tomássemos banho até o dia seguinte. Assim eu fiz. O perfume do Baño de Amor era delicioso.

O tremor, o sal e o Baño me trouxeram uma energia nova. Me sentia bem, renovada. Havia conversado com John e com a Tatiana, havia tocado músicas para a Tracy. Havia brincado com o Felix. Era uma nova pessoa.

No final da tarde, queimamos o Despacho. Nathan montou o fogo e nosso pacote queimou lindamente enquanto conversávamos em torno da fogueira. Dali, parecia que montaríamos uma caravana para Cusco e eu iria adorar a companhia desses novos amigos por lá. Otto veio perguntar se eu estava melhor. Falamos um pouco sobre a experiência que eu havia passado e ele me contou que quando me ouviu, achou que fosse uma barata que havia passado em cima de mim. Acho que ando fazendo drama demais.

Encerramos esse dia lindo com uma sessão de Nidra Yoga, conduzida pela Tatiana. Ela me explicou que é uma técnica super antiga, indiana, que consiste em uma meditação profunda, sem movimento, como se fosse um sonho lúcido. Deitamos nos nossos colchões na Maloca e seguimos nossa professora interina que nos guiou por uma viagem dentro de nós mesmos, para depois nos conectarmos com todo o cosmos. É uma técnica bem poderosa. O relaxamento foi tamanho que ao final me vi toda picada por mosquitos, que fizeram a festa sem que eu ao menos sentisse. Mais uma boa prática para ser adotada na rotina.

Na dualidade das emoções

Capítulo 12

A terceira Cerimônia me trouxe momentos de muita alegria. Como já de costume, o vômito veio rápido, mas com ele, alucinações lindas e inspiradoras. Eu estava ali, deitada estática, sentia o corpo adormecido, formigando, e me via nas paisagens do artista visionário que conhecêramos pela manhã. Era uma sensação maravilhosa de bem estar. Quando sentia o corpo formigando muito, fazia um esforço mental para voltar e abria os olhos.

Me transportei de corpo algumas vezes, iniciando por uma bebê aranha sendo muito bem cuidada e protegida pela mamãe aranha. Sentia conforto, carinho e segurança. Fiquei ali por um tempo, vendo a vigilância de quem me protegia e recebendo alimento para meu desenvolvimento. Na sequência, virei um bebê pássaro ensaiando meus primeiros vôos. E como foi difícil. Alguns rasantes e logo eu estava novamente no chão. Tentava imaginar longe, visualizar que conseguiria, mas precisava fazer muita força e parecia que ainda não estava em condições de voar. Pela dor que senti nas pernas no dia seguinte, imagino que eu estivesse tentado com os membros errados.

Fui ainda um filhote de felino. Impossível saber se um jaguar, um puma ou um leão. Mas brincava e rolava na grama verde com meus irmãos. Sentia muita paz. Me sentia em casa. Nesse momento, a Maestra começou a cantar.

Sentia enjôo e sono, mas não queria sair daquele transe. Por vezes, algumas coisas ruins apareciam, como facas, ou mesmo aranhas (dessa vez não no bom sentido). Nessas horas, abria os olhos e pensava “não quero nada de ruim hoje”. Até que Noya Rao apareceu. Dessa vez em forma de gente. Não sabia definir se era homem ou mulher, mas era imponente. De repente meus ouvidos fecharam e comecei a sentir crescer a minha volta uma grande bolha transparente, um pouco rosada. Ela estava me ensinando a me proteger. Me mostrou que a intenção com as facas era apenas me mostrar que, sempre que eu precisasse, eu poderia recorrer a este sentimento. Um sentimento de entorpecimento e segurança. Como se ali, nada pudesse me atingir.

De repente apareceu um bebê em um berço, bem na minha frente, ainda numa das paisagens dos quadros de arte visionária. Imediatamente o transformei em luz e voamos. Voamos do Peru ao Brasil e até o apartamento da minha irmã. Entrei em seu quarto e a vi ali, dormindo em sua cama. A Penny, sua cachorra, me viu, mas não latiu como de costume. Estava ela também na cama e assim ficou, assistindo enquanto eu depositava a luz na barriga da sua mamãe. Era uma sensação de alegria profunda. Tanto por saber que estava entregando a ela o sonho do momento, quanto por ter conseguido voar.

Maestra Juanita cantou longamente em frente à minha cama. Por um momento, a Maloca estava na completa escuridão e silêncio. Não havia ninguém batendo no chão ou pedindo ajuda. Nenhum Mapacho acesso. Apenas o escuro, o silêncio e a voz de Juanita. Senti muito amor e energia nesse momento e, pela primeira vez, não dormi assim que ela passou para a próxima cama. Dessa vez a vi concluir o círculo e retornar ao centro.

Elio então pegou o violão e começou a cantar. Aos poucos, íamos aprendendo as canções e tentando acompanhar, ainda deitados, ainda que só o refrão. Um a um, fomos sentando. Todos menos Otto, que começou a vomitar com muita angústia e dor. Seguimos cantando, até que Anna tomou a palavra para perguntar como estávamos. Elyse deu seu ok, mas não quis cantar. Na sequência, Tatiana. “Agora estou bem, mas adoraria um abraço”, disse. Minha vontade era de me arrastar até ela e abraçá-la, mas ainda me sentia alta e fiquei com medo de virar algum pote de vômito. Ninguém foi até ela. Meu coração ficou partido.

Tracy estava bem e passou a palavra para mim. Contei que havia viajado muito e, por isso, estava exausta, mas muito feliz. A única música que me veio à cabeça foi:

Is this love,

is this love,

is this love that I’m feeling?

Todos cantaram juntos e assim a roda seguiu. Adelina, Nathan, John – que cantou lindamente –  e Otto, que seguia lutando com suas angústias. Assim, seguimos cantando e emanando amor para que ele pudesse superar o que estava sentindo e encontrar a cura. Logo ele caiu no choro. Cantamos mais alto. A energia desse momento foi inexplicável.

Quando encerramos a roda, resolvi retornar para o meu Tambo. Passei pelo banheiro antes e coloquei sobre a caixa da descarga, minha garrafinha de água e o isqueiro. Senti que elas balançaram, mas entendi que era em função do meu senta e levanta da privada. Ainda lembro ter pensado algo como “eu não deveria, neste estado, arriscar colocar a garrafa em cima da caixa da descarga. Ela poderia cair no vaso”.

Fui para o quarto e deitei. Logo em seguida apareceu Elio perguntando se estava tudo bem, já que havíamos tido um terremoto consideravelmente forte. Nem cheguei a me assustar, afinal, devo ter achado que era coisa da minha cabeça. Ainda deitada lembro de pensar “sim, definitivamente a Terra tá balançando. Não, eu estou balançando. Não, estamos todos parados e minha cabeça que não está querendo parar”. 

Capítulo 13

A roda de conversa foi bastante intensa, como já de costume. Antes de qualquer coisa, ofereci à Tatiana o abraço que ela havia solicitado ao final da Cerimônia. Me senti bem por poder dar à ela um pouco de amor e conforto. Dividimos nossos aprendizados e Otto contou um pouco do que passou, seus medos e do amor que sentiu emanando de todos nós. A roda é sempre um momento muito profundo, onde conhecemos um pouco melhor a cada um.

Dormimos juntos, cantamos juntos, vomitamos juntos, dividimos nossas piores dores, nossos maiores medos, nossas pequenas conquistas. Não tem como ficar mais íntimo do que isso. Aos poucos, os laços vão se formando. Sinto ainda ter tido pouco contato com John. Mais reservado, ele segue firme as regras do silêncio. Ao menos comigo.

Eu já me vejo cansada da floresta. Conto os dias para tomar um banho quente e viver em um lugar onde o conceito de limpeza seja ao menos um pouco mais próximo do meu. Quero caminhar sem ter que constantemente tirar teias de aranha do meu rosto ou cabelo. Quero ver as estrelas sem me preocupar com mosquitos. Quero sentir de novo o silêncio de nenhum zumbido em meu ouvido. Quero conversar com as pessoas, trocar experiências, conhecer histórias.

Fico eu aqui, no meio da floresta, tendo a certeza de que sou de praia. Quero também um banheiro no quarto, para que eu não precise segurar o xixi, nem sair a noite, no escuro, de lanterna em mãos, para conseguir voltar a dormir. Penso se fazer jejum não seria melhor do que seguir comendo essa comida pálida, sem cheiro e sem sabor. Penso nos lugares lindos que ainda irei conhecer… Machu Picchu, Montanha Colorida, Lago Titicaca.

Ao mesmo tempo, o livro fala sobre viver o agora. Sobre estar presente. Penso nos desafios impostos por Noya Rao e nos sacrifícios que ela pede como prova do comprometimento com a elevação espiritual. Rezo, medito, respiro. Tento encontrar a paz comigo mesma e com o ambiente. Sei que tudo isso faz parte da jornada. Entendo. Aceito. Agradeço.

Capítulo 14

Durante a cerimônia de Noya Rao da noite passada, descobri que Nathan também está indo a Cusco. Provavelmente terei companhia em alguns passeios e confesso que gosto da ideia.  Segundo Anna, outros também irão para o mesmo destino. Resta saber quem.

Esta seria a última cerimônia em que beberíamos o chá da árvore mestra da nossa dieta. Após a quarta Cerimônia de Ayahuasca, teríamos uma sessão de Baño de Amor, com um preparo feito por Maestra Juanita com o que sobrou da bebida. Receberíamos esse banho como a conclusão desse laço que deve permanecer para sempre, já que a partir de agora, Noya Rao já vive em cada um de nós. Anna conduziu mais uma vez de forma maravilhosa, com uma meditação poderosa ao final.

Eu havia dormido três horas durante à tarde e ainda assim, dormi bem a noite toda. Meu sono tem sido profundo por tanto tempo, de acordo com o aplicativo que uso para monitorá-lo, que parece que eu saio do corpo e me transporto dali. A sensação quando acordo é de quem acaba de sair de um belo descanso.

Acordei super disposta para a yoga. Dessa vez trabalharíamos o chakra da garganta, da expressão. A prática dessa vez foi um pouco mais fluida, com movimentos orgânicos e menos poses estabelecidas. Nos trouxe grande sensação de bem estar e decidi que o dia seria bom, que não pensaria mais no final do retiro, por mais difícil que isso fosse. Também decidi me focar nas frutas, já que essa é a parte boa da comida aqui.

Ainda pela manhã, Anna convidou à todos para fazermos juntos um Despacho. O ritual tem origem nos Andes e é uma oferenda à Pacha Mama, ou à Mãe Terra. Pediu que escrevêssemos bilhetes com desejos e que colhêssemos algumas flores e folhas. O Despacho seria queimado no dia seguinte.

Escrevi minha carta agradecendo à tudo o que sou e a tudo o que conquistei. Agradeci à minha curiosidade, que me faz sempre querer conhecer mais, à minha família e amigos, ao amor que sinto de cada um. Agradeci às oportunidades que me foram dadas e também por tê-las reconhecido e aproveitado quando achei que deveria. Pedi mais uma vez para que Noya Rao me guiasse pelo caminho que fosse melhor para mim e para o meu aprendizado. E pedi para que meu gato Johnnie Walker se curasse de um câncer intratável. Que se não fosse possível, que ele vivesse o máximo possível sem dor. E que quando a dor fosse inevitável, que ele fizesse a passagem por ele mesmo, em paz e de forma confortável, preferencialmente comigo ao seu lado.

Anna iniciou o Despacho estendendo uma folha de papel de seda branco na mesa. No centro, colocou uma concha, representativa da água como fonte de vida. Explicou ainda que a concha é o que fica, é a base. Que ela pode ficar por dias na fogueira, mas que ela não se destrói, assim, representa também a força de uma boa estrutura. Na sequência, preencheu a concha com gordura de Alpaca. Explicou que a Alpaca é um animal adorado nos Andes por ter o servir como essência. Sua carne serve de alimento, sua gordura, de energia para iluminação, seus ossos para ferramentas e sua lã e couro para roupas e artefatos. Anna explicou que nos Andes, a elevação espiritual buscada é a de servir por inteiro, assim como a Alpaca.

Na sequência foram entrando outros elementos, grãos representativos de intenções e energias. Lembro que a quinoa representava a superação de obstáculos. “A quinoa nasce em qualquer terreno, mesmo os mais duros ou rochosos. Ela representa a esperança e a possibilidade de reverter as adversidades”, explicou Anna. Uvas passa significavam os anciãos. “Eles ganham rugas, mas ficam mais doces”, disse. Também grãos de milho, folhas de coca, balas e doces. “Precisamos sempre lembrar de festejar. Somos seres humanos e merecemos momentos de prazer”, continuou Anna.

Ao final, alcançamos nossas cartas e cobrimos a oferenda com as flores colhidas pela floresta. Anna então embrulhou tudo com o papel de seda branco que estava na base e amarrou com um cordão. Depois o colocou em um papel de presente, passando ainda cordas de duas cores em torno dele. Por fim, adicionou as folhas que havíamos colhido junto com as flores. Era uma oferenda cheia de energias e intenções e esperávamos que fosse bem recebida.

Com as emoções à flor da pele, fomos para o almoço. Otto sentou-se em frente à mim e chorou por algum tempo, em silêncio. Fiquei em dúvida sobre interferir ou não, mas decidi que me faria bem ajudar. Lhe ofereci minha mão e deixei que a segurasse pelo tempo que precisasse. Não era necessário falarmos a respeito. Eu apenas queria dizer que estava ali para ele. Que ele não estava sozinho.

Fomos então lavar a alma com um banho no lago. Foi o meu primeiro, mas o pessoal já havia se aventurado por ali. Foi um bom banho, mas melhor foi o banho de chuveiro que tomei na sequência. Assim, no meio do dia, calor, foi o melhor de todos o que havia tomado. Aproveitei para ficar ali por bastante tempo, curtindo o momento.