Daily Archives: 28 de agosto de 2020

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Visitas inesperadas, Noya Rao e arte

Capítulo 11

Acordei antes do café, mas ansiosa por comida. Parecia que eu poderia passar mais um dia em jejum, mas o simples fato de eu haver decidido comer me encheu de fome. No meu quarto, muitas baratas mortas e uma aranha gigante encolhida no meio da escada. Aproveitei que avistei Ramiro na minha ida ao banheiro e pedi ajuda para a remoção do corpo.

Depois do banho gelado, fui direto para a cozinha. Otto já estava lá e logo chegaram os outros. Comi dois pedaços de mamão que estavam deliciosos, doces. Pareciam a melhor comida do mundo. Em compensação, havia um creme de ervilha que me encheu os olhos mas que, no fim, não tinha nada de sal, bem como toda a comida por ali.

Na sequência veio a roda de conversa. A cada encontro, o grupo se abria mais. E haviam problemas realmente muito sérios por ali. Abuso sexual quando criança, vício em crack e heroína na família, vítima de múltiplos estupros, experiências sexuais traumáticas. Tudo sendo colocado para fora, sendo curado. Era um processo muito profundo e muito bonito.

Contei minha história e agradeci a cada um por estarem ali. Sabia que havia um motivo para eles estarem em minha vida e que, até o final da jornada, aprenderia com cada um deles.

O restante do dia foi bem calmo. Havia passado quase que toda a tarde na casa central, lendo numa rede, até terminar o livro do Don Juan. Diferente da primeira cerimônia, não senti cansaço na parte da tarde. Era como se minhas poucas horas com Noya Rao tivessem valido por muitas.

No almoço teve um peixe muito saboroso, ainda que sem sal. Era irônico botar salada por cima do arroz na intenção de dar sabor a ele. A melhor parte eram sempre as frutas. Almoço e jantar. Banana, pera, melão, melancia. Todas deliciosas. Mas ainda me faltava o sal.

Depois do jantar fui até o quarto na intenção de tomar um banho antes da cerimônia da Noya Rao, mas paralisei quando vi uma aranha, prima da de de manhã, pendurada na cortina. Petrifiquei no meio do quarto e comecei a suar como há tempos não acontecia. Era uma tarântula de tamanho médio, do tamanho da palma da minha mão. Não sabia o que fazer. Decidi que eu não queria mais ficar na floresta. Queria ar condicionado, minha cama, zero bichos. Felizmente avistei luz no quarto da Tatiana, que veio em meu socorro removendo o que então vimos serem duas aranhas com traquilidade. Eu dizia “mata” e ela dizia “elas não precisam morrer”, e as arrastou para a rua.

Na cerimônia da Noya Rao, Anna cantou um ícaro para a árvore que fez com que todos nós entrássemos em alfa num piscar de olhos. Foi lindo. Preciso lembrar de pedir que ela escreva para mim.

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O dia seguinte amanheceu chuvoso e frio. Um banho difícil para acordar e ir para a yoga. Trabalhamos o chakra do coração em movimentos gentis e lentos, bem como o dia pedia. Fiquei pensando sobre a prática da yoga pela manhã. Ainda não sei se é um hábito que irei levar daqui ou se o dia-a-dia vai me convencer que uma hora a mais de sono ainda funciona melhor para mim. Mas por aqui posso dizer que acordo com outra energia. Claro, estou dormindo bem e bastante.

Comecei um novo livro, chamado The New Earth (Um Novo Mundo), de Eckhart Tolle, famoso autor de O Poder do Agora. A leitura é fácil e muito interessante, trazendo à luz conceitos que passam desapercebidos  por nós. Ego, pensamentos, emoções, o que é meu e o que sou eu, trauma, dores… Passei quase todo o dia envolvida com ele, dobrando cada página com passagens interessantes para que eu pudesse fotografar depois e refletindo sobre a aplicação da teoria na prática.

Ainda durante a manhã, tivemos um workshop de arte visionária. Para a aula, veio um artista de Pucallpa que trouxe com ele, algumas de suas obras. Eram peças lindas, cheias de cores fortes e fluorescentes. Mesclavam a floresta, índios, cachoeiras e animais num cenário estilo Avatar. Nossa tarefa era em duplas, um deveria pintar o olho do outro, depois explicando o que viu e como optou representar.

Minha dupla era Tracy e foi maravilhoso dividir essa experiência com ela. Cheia de juventude, cores e luzes, ela havia se apagado em função de alguns traumas internos. Iniciamos com o desenho da floresta, sempre guiados pelo artista, para depois irmos para o olhar. Estava bastante insegura quanto a minha habilidade de desenhá-la. Queria fazer justiça à beleza que eu enxergava e não sabia se teria talento para isso. Pedi desculpas já antes de iniciar, mas ela mesma disse que parasse com isso. Assim, nos divertimos enquanto misturávamos cores e ferramentas.

Era incrível poder passar para o papel a essência de Tracy. Afinal, pouco havíamos conversado em função do silêncio. O que eu sabia sobre ela havia sido compartilhado nas rodas de conversa, mas aquele era um momento de cura, era diferente. Por fim, acho que consegui representá-la bem. Tentando através de cores, mostrar toda alegria que eu via nela. Da mesma forma, Tracy apresentou seu desenho falando sobre o que enxergava em mim. “Vejo um pessoa forte, segura, mas com uma incrível doçura e gentileza”, contou. Pedi que ela me desse seu desenho e entreguei o meu à ela.

Eu, pelos olhos da Tracy.

À tarde sentamos todos na Maloca para ouvir um podcast gravado por Nathan à um amigo alemão que havia dividido com ela uma experiência similar em um retiro na Costa Rica. Nathan é veterano do exército americano e, como já mencionei, havia passado muitos anos entre Iraque e Afeganistão no que ele chamou de “a guerra contra o terror”. Diagnosticado com problemas cerebrais em função de traumas e concussões, havia passado por inúmeros médicos e  tratamentos. Nos contou que havia gasto algo em torno de 4,5 milhões de dólares em tratamentos, mas que nada havia funcionado. Até que ele descobriu a Ayahuasca e as plantas medicinais.

No podcast, que durou mais de uma hora, ele contava sobre sua intenção de trazer para a discussão os tratamentos com base em plantas consideradas psicodélicas e, por isso, proibidas nos Estados Unidos. Ele queria mostrar que esse é um tipo de tratamento sério, natural e imensamente mais barato, além de claro, mais funcional. Para isso, Nathan está escrevendo um livro, com a ajuda de dois autores, para que sua mensagem seja massificada.

À noite teríamos nossa terceira cerimônia. mas eu estava bem receosa quanto a minha participação. No almoço eu havia comido arroz com feijão e a mistura não havia me feito bem. Ainda assim, decidi arriscar.

Conversaria com Aya e Noya Rao e pediria que pegassem leve comigo. De qualquer forma, avisei Anna, já que meu colchão ficava bem em frente a organização central, onde ficavam os facilitadores e não queria correr o risco de atropelar ninguém no escuro.