Daily Archives: 14 de junho de 2020

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Dois dias de jejum

Capítulo 8

Na manhã do dia seguinte haveria uma roda para compartilhar os aprendizados da noite anterior. Levantei, tomei o banho gelado – não sabia se um dia me acostumaria àquilo – e retornei ao Tambo para refletir um pouco sobre a Cerimônia. Percebi que as baratas haviam sumido do quarto, como se, no primeiro dia, houvessem sido colocadas ali como um teste da minha fé no processo.

A roda de conversa foi bem especial. Eu não havia sido a única a ter visto de perto o poder da Ayahuasca, mas alguns dos participantes resistiram por mais tempo à sua força. Quando contei minha experiência, Anna mencionou que minha conexão com a Noya Rao havia sido formada. Tanto pela luz branca, quanto pelas corujas, que para a tribo Shipibo, são as mensageiras da noite, trazendo sabedoria e proteção. Ela ainda disse que uma das músicas que havia cantado ao final da Cerimônia, falava de corujas, e que ela havia sentido a necessidade de cantá-la.

Era dia de jejum, e não sabia como meu corpo reagiria sem comida depois de tudo o que havia saído de mim na noite anterior. Para a minha surpresa, não tive muita dificuldade. Me sentia alimentada espiritualmente e capaz de passar mais do que apenas um dia na modalidade. Foi um dia de muita escrita. Pela primeira vez, usei o caderno/diário que me ofereceram no primeiro dia. Queria documentar cada sensação, cada aprendizado. Queria mais. Mal podia esperar pela próxima Cerimônia.

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Era meio dia quando decidi dormir um pouco. Acordei três horas depois, pronta para o workshop sobre Noya Rao que teríamos em seguida. Às 18h30, mais uma Cerimônia, dessa vez bem curta e somente com a Planta Mestre. Tomamos um copo cada. E a cada copo, Anna fazia a soplada com Mapacho na própria bebida.

Agredeci à Noya Rao por me permitir essa conexão tão especial. Pedi que me mostrasse o caminho para o meu aprendizado, que me colocasse em frente ao que fosse necessário para minha evolução como pessoa, elevação espiritual e expansão da consciência. Que eu fosse colocada à frente de desafios pessoais e que ela pudesse me acompanhar nesses momentos, me protegendo e garantindo a minha segurança.

Quando voltei ao quarto, havia uma barata dentro do meu mosquiteiro.

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No caminho para o quarto, o céu mais estrelado que já vi. Eram tantas estrelas que elas se misturavam e criavam uma sombra, como desenhos coloridos. Parei no meio do campo e fiquei ali um tempo, olhando para cima e admirando o espetáculo que se colocava para mim. Os mosquitos, é claro, aproveitaram o momento.

Capítulo 9

Decidi por mais um dia de jejum. Havia passado bem no dia anterior e acreditava que conseguiria manter o exercício por mais tempo. Era o primeiro dia em silêncio. Antes de ir para a Yoga, deixei recados no Livro do Silêncio. Ao Elio, pedi que me ajudasse com as baratas. À Anna, que procurasse a letra da música “Me cura de mim”. O título viera na minha cabeça, mas de forma alguma eu conseguia lembrar as palavras.

A Yoga já me pareceu um pouco mais fácil. Na primeira vez havíamos trabalhado o primeiro chakra e, desta, trabalharíamos o segundo e o terceiro. Anna guiou a prática de forma gentil e delicada, consciente do jejum coletivo e da energia baixa. Encerramos, como da primeira vez, com uma posição de rendição completa, chamada shavasana. Deitados no chão, braços e pernas abertas, conectados à terra e abertos para as energias que viriam.

O banho gelado não pareceu incomodar tanto. Li bastante deitada em uma rede na casa principal, de onde saí próximo da hora do almoço. Eu não sabia quantos estavam mantendo o jejum e preferia não ser tentada com cheiro de comida. Enquanto estava por lá, Ramiro, um dos ajudantes do local, passou um produto no meu Tambo para dar um jeito nas baratas. Sabia que era uma mistura com gasolina, o que por si só, já é um pouco assustador considerando que à noite são as velas que iluminam o lugar. Elio me avisou que não retornasse ao Tambo por ao menos 30 minutos.

Quando retornei, o cheiro era fraco. Fui até a varanda fumar um Mapacho como haviam me ensinado na primeira Cerimônia. Depois chegou Anna com um papel. Havia encontrado a música e descrito a letra para mim. Infelizmente, não era a que eu havia solicitado, mas entendi que havia sido esta por algum motivo.

“CUIDAR DE MIM

Minha cabeça bem confusa
Só de ver ela passar
Só de ver ela sem mim
Ainda usa a mesma blusa
Com o broche que eu lhe dei
Combinando com o colar
Eu fico imaginando coisas
Me pego imaginando coisas
Lembranças de um tempo bom
Que a gente se amava em paz
Que pena que vacilei
Agora que não dá mais
Você não me deu perdão
Não tem problema
Espero que esteja bem
Feliz como eu fui feliz
O tempo é quem vai dizer
A vida quem quis assim
Não sou capaz de entender
Como sair de cena
Não dá pra mim
Eu vou voar
Melhor assim.”

Traduzi a música para o inglês, pensando que deveria compartilhar seu significado com Anna. Haveria de ser uma mensagem importante, ainda que pra mim não fizesse sentido algum. Pensei também em um dos participantes e na sua busca. Não sabia se o silêncio me permitiria oferecer-lhe o papel, então pedi à Noya Rao que repassasse a mensagem.

O dia seguiu com mais leitura. Praticamente terminei o livro com os ensinamentos de Don Juan. O jejum não incomodava. Me sentia bem e hidratada, apesar de estar ingerindo bem menos líquidos do que de costume. A vontade de comer existia, mas era mais uma tentação por sal, gorduras e carne do que pela comida que me seria servida. Imaginei que era uma provação da Noya Rao, então desviei a atenção do assunto.

A tarde tive uma sessão de massagem individual com Maestra Juanita. Ainda não sei dizer  se os cem Soles valeram a pena ou não. É uma massagem de cura, então inicia com ela perguntando sobre dores no corpo. Falei da minha dor de anos no ombro, que me fez parar de jogar vôlei, e dos joelhos, que já sofreram com alguns saltos desde que comecei a jogar, ainda na escola.

Foi como uma sessão de tortura. Juanita apertou costas, ombro, axila e joelhos de forma a me fazerem gritar de dor. A cada grito, ela murmurava algo como “aham”. De fato, aos pouco os apertos foram ficando menos e menos doloridos, mas a esta altura, é impossível saber se foi meu corpo aceitando o castigo, ou se estava de fato me curando. Espero ter sido a segunda opção.

A noite, nossa segunda Cerimônia com a Ayahuasca. Maestra Juanita havia pedido que Elio colocasse um pouco de Noya Rao na mistura, potencializando nossa experiência. Eu estava sem comer há 56 horas, desde o almoço do dia da primeira Cerimônia, e além disso, havia botado para fora qualquer resquício de comida na minha experiência com a Ayahuasca. Assim, tinha expectativas de grandes respostas durante a noite.

Dessa vez me preparei melhor. Levei travesseiro, coberta, moletom e meias. Não passaria frio.