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Dois dias de jejum

Capítulo 8

Na manhã do dia seguinte haveria uma roda para compartilhar os aprendizados da noite anterior. Levantei, tomei o banho gelado – não sabia se um dia me acostumaria àquilo – e retornei ao Tambo para refletir um pouco sobre a Cerimônia. Percebi que as baratas haviam sumido do quarto, como se, no primeiro dia, houvessem sido colocadas ali como um teste da minha fé no processo.

A roda de conversa foi bem especial. Eu não havia sido a única a ter visto de perto o poder da Ayahuasca, mas alguns dos participantes resistiram por mais tempo à sua força. Quando contei minha experiência, Anna mencionou que minha conexão com a Noya Rao havia sido formada. Tanto pela luz branca, quanto pelas corujas, que para a tribo Shipibo, são as mensageiras da noite, trazendo sabedoria e proteção. Ela ainda disse que uma das músicas que havia cantado ao final da Cerimônia, falava de corujas, e que ela havia sentido a necessidade de cantá-la.

Era dia de jejum, e não sabia como meu corpo reagiria sem comida depois de tudo o que havia saído de mim na noite anterior. Para a minha surpresa, não tive muita dificuldade. Me sentia alimentada espiritualmente e capaz de passar mais do que apenas um dia na modalidade. Foi um dia de muita escrita. Pela primeira vez, usei o caderno/diário que me ofereceram no primeiro dia. Queria documentar cada sensação, cada aprendizado. Queria mais. Mal podia esperar pela próxima Cerimônia.

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Era meio dia quando decidi dormir um pouco. Acordei três horas depois, pronta para o workshop sobre Noya Rao que teríamos em seguida. Às 18h30, mais uma Cerimônia, dessa vez bem curta e somente com a Planta Mestre. Tomamos um copo cada. E a cada copo, Anna fazia a soplada com Mapacho na própria bebida.

Agredeci à Noya Rao por me permitir essa conexão tão especial. Pedi que me mostrasse o caminho para o meu aprendizado, que me colocasse em frente ao que fosse necessário para minha evolução como pessoa, elevação espiritual e expansão da consciência. Que eu fosse colocada à frente de desafios pessoais e que ela pudesse me acompanhar nesses momentos, me protegendo e garantindo a minha segurança.

Quando voltei ao quarto, havia uma barata dentro do meu mosquiteiro.

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No caminho para o quarto, o céu mais estrelado que já vi. Eram tantas estrelas que elas se misturavam e criavam uma sombra, como desenhos coloridos. Parei no meio do campo e fiquei ali um tempo, olhando para cima e admirando o espetáculo que se colocava para mim. Os mosquitos, é claro, aproveitaram o momento.

Capítulo 9

Decidi por mais um dia de jejum. Havia passado bem no dia anterior e acreditava que conseguiria manter o exercício por mais tempo. Era o primeiro dia em silêncio. Antes de ir para a Yoga, deixei recados no Livro do Silêncio. Ao Elio, pedi que me ajudasse com as baratas. À Anna, que procurasse a letra da música “Me cura de mim”. O título viera na minha cabeça, mas de forma alguma eu conseguia lembrar as palavras.

A Yoga já me pareceu um pouco mais fácil. Na primeira vez havíamos trabalhado o primeiro chakra e, desta, trabalharíamos o segundo e o terceiro. Anna guiou a prática de forma gentil e delicada, consciente do jejum coletivo e da energia baixa. Encerramos, como da primeira vez, com uma posição de rendição completa, chamada shavasana. Deitados no chão, braços e pernas abertas, conectados à terra e abertos para as energias que viriam.

O banho gelado não pareceu incomodar tanto. Li bastante deitada em uma rede na casa principal, de onde saí próximo da hora do almoço. Eu não sabia quantos estavam mantendo o jejum e preferia não ser tentada com cheiro de comida. Enquanto estava por lá, Ramiro, um dos ajudantes do local, passou um produto no meu Tambo para dar um jeito nas baratas. Sabia que era uma mistura com gasolina, o que por si só, já é um pouco assustador considerando que à noite são as velas que iluminam o lugar. Elio me avisou que não retornasse ao Tambo por ao menos 30 minutos.

Quando retornei, o cheiro era fraco. Fui até a varanda fumar um Mapacho como haviam me ensinado na primeira Cerimônia. Depois chegou Anna com um papel. Havia encontrado a música e descrito a letra para mim. Infelizmente, não era a que eu havia solicitado, mas entendi que havia sido esta por algum motivo.

“CUIDAR DE MIM

Minha cabeça bem confusa
Só de ver ela passar
Só de ver ela sem mim
Ainda usa a mesma blusa
Com o broche que eu lhe dei
Combinando com o colar
Eu fico imaginando coisas
Me pego imaginando coisas
Lembranças de um tempo bom
Que a gente se amava em paz
Que pena que vacilei
Agora que não dá mais
Você não me deu perdão
Não tem problema
Espero que esteja bem
Feliz como eu fui feliz
O tempo é quem vai dizer
A vida quem quis assim
Não sou capaz de entender
Como sair de cena
Não dá pra mim
Eu vou voar
Melhor assim.”

Traduzi a música para o inglês, pensando que deveria compartilhar seu significado com Anna. Haveria de ser uma mensagem importante, ainda que pra mim não fizesse sentido algum. Pensei também em um dos participantes e na sua busca. Não sabia se o silêncio me permitiria oferecer-lhe o papel, então pedi à Noya Rao que repassasse a mensagem.

O dia seguiu com mais leitura. Praticamente terminei o livro com os ensinamentos de Don Juan. O jejum não incomodava. Me sentia bem e hidratada, apesar de estar ingerindo bem menos líquidos do que de costume. A vontade de comer existia, mas era mais uma tentação por sal, gorduras e carne do que pela comida que me seria servida. Imaginei que era uma provação da Noya Rao, então desviei a atenção do assunto.

A tarde tive uma sessão de massagem individual com Maestra Juanita. Ainda não sei dizer  se os cem Soles valeram a pena ou não. É uma massagem de cura, então inicia com ela perguntando sobre dores no corpo. Falei da minha dor de anos no ombro, que me fez parar de jogar vôlei, e dos joelhos, que já sofreram com alguns saltos desde que comecei a jogar, ainda na escola.

Foi como uma sessão de tortura. Juanita apertou costas, ombro, axila e joelhos de forma a me fazerem gritar de dor. A cada grito, ela murmurava algo como “aham”. De fato, aos pouco os apertos foram ficando menos e menos doloridos, mas a esta altura, é impossível saber se foi meu corpo aceitando o castigo, ou se estava de fato me curando. Espero ter sido a segunda opção.

A noite, nossa segunda Cerimônia com a Ayahuasca. Maestra Juanita havia pedido que Elio colocasse um pouco de Noya Rao na mistura, potencializando nossa experiência. Eu estava sem comer há 56 horas, desde o almoço do dia da primeira Cerimônia, e além disso, havia botado para fora qualquer resquício de comida na minha experiência com a Ayahuasca. Assim, tinha expectativas de grandes respostas durante a noite.

Dessa vez me preparei melhor. Levei travesseiro, coberta, moletom e meias. Não passaria frio.

Muito prazer, Ayahuasca.

Capítulo 6

As 19 horas e 30 minutos, conforme o combinado, estávamos todos à postos para a Cerimônia. Eu, de calça legging e moletom, os outros com travesseiros, cobertas e vestindo seus pijamas. Era um sinal de que eu não havia entendido bem a mensagem. 

Colchões espalhados em semi círculo. No centro estavam a Maestra, Elio e Anna. Elio então passou o recipiente onde estava a Noya Rao para Maestra Juanita, tirou a tampa e deixou que ela fizesse contato com seus espíritos, pedindo proteção e luz para o dieteros. Maestra cantou e assoviou, com a cabeça praticamente dentro do recipiente. Os assovios, baixos e falhos, são chamados de ícaros.

Com o chá abençoado, chamaram um a um dos participantes, iniciando por Elyse. Ela sentou-se em frente a Elio, que lhe entregou o copo com a bebida. Arrastou-se um metro e parou então em frente à Maestra, que fez a soplada (fuma o Mapacho e solta a fumaça na cabeça, mãos e rosto). Ne sequência veio Tatiana, depois Tracy. Havia chegado, então, a minha vez.

Segui com o comportamento das que vieram antes de mim. Sentei-me em frente a Elio, recebi o copo e, antes de beber, reforcei minhas intenções, pedindo para que a planta me guiasse pelo melhor caminho para o meu aprendizado. Bebi a Noya Rao e, para minha surpresa, achei bem saborosa. Um chá amargo, como gosto. Sentei-me em frente à Maestra e recebi, eu mesma, a soplada. Ao meu lado estavam, na ordem, Adelina, Nathan, John e Otto.

Quando todos haviam bebido a Noya Rao, Elio nos ensinou sobre o Mapacho. Haviam cigarros com essa mistura à disposição, assim como Água de Florida, Palo Santo e velas. Pediu que acendêssemos nossos Mapachos e fizéssemos três sopradas por vez. Primeiro para cima, depois para a direita, então esquerda e, por fim, em nossas mãos abertas em frente ao rosto, para que pudéssemos espalhar a fumaça por nossa cabeça. O gosto era bem forte, então deixei que ele apagasse depois dessa primeira aula. O Mapacho, assim como a Água de Florida, deveriam ser utilizados durante a Cerimônia para casos em que o participante estivesse percebendo a Ayahuasca muito intensa e precisasse pedir proteção.

Iniciamos então a Cerimônia. Mas antes, acordamos todos que o dia seguinte seria de jejum.

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Eu estava animada com o que a Ayahuasca poderia me apresentar. A tarde havia conversado com Nathan, que me contou um pouco da sua experiência com a bebida medicinal. Perguntou se eu estava nervosa. “Na verdade não. Não li muito a respeito, então não sei exatamente o que esperar. Estou é curiosa com o que ela pode me mostrar”, contei.

Na mesma ordem da Noya Rao, Elyse foi a primeira. Sentou-sem frente a Elio, que lhe ofereceu a bebida. Tomou, fez um som de desagrado e retornou ao seu lugar. Enquanto Tatiana se deslocava, Elyse enxaguava a boca com água e cuspia no balde do vômito diversas vezes em sequência. Elio havia dito que isso poderia acontecer. Como o sabor da bebida não ela muito agradável, poderíamos fazer esse enxágue, mas sem beber a água. 

Fiquei um pouco apreensiva, mas Tatiana segurou a onda e voltou ao seu lugar em silêncio. Da mesma forma, Tracy. Era a minha vez.

Capítulo 7

Passei o dia tentando compreender o que havia se passado na noite anterior. Havia sido uma experiência poderosa, mas ainda confusa quanto às mensagens que eu precisaria entender. Me sentia bem, porém um pouco cansada. Meus pensamentos estavam desordenados e eu tentava, com bastante dificuldade, elaborar um pouco do que eu estava sentindo.

A Ayahuasca havia sido servida em uma copo pequeno, feito com madeira de Noya Rao. Era uma dose que se podia beber de uma só vez, o que facilitou um pouco as coisas. Era espessa, arenosa e, extremamente doce. Sentia cheiro de melaço de cana, apesar de saber que não havia melaço na fórmula. Voltei ao meu lugar, deitei e pensei: “OK, não é tão ruim assim”. No que pareceu um minuto depois, estava com o pote de vômito em meus braços e colocava para fora muito do que havia dentro de mim. Estranho, mas foi uma sensação libertadora. 

Apesar de ter absorvido bem o discurso sobre render-se e deixar o universo me mostrar o melhor caminho, sempre tive um comportamento bem controlador. Como disse: na prática, muita teoria. A Ayahuasca me pegou no contrapé. Chegou dizendo “aqui quem manda sou eu”. E assim foi por toda a noite. Era uma apresentação, estávamos apenas nos conhecendo. Mas ela deixara claro, desde o início, sua força e poder sobre mim.

Ela me fazia sentir muito sono, mas ao mesmo tempo, não me permitia dormir. Foram horas de senta, levanta, deita, vira, senta de novo… Uma inquietação física, reflexo da inquietação da mente. Aos poucos, algumas visões apareceram. Primeiro era uma luz. Apenas um ambiente claro, uma luz branca, fluorescente. Depois, corujas. De diversos tipos e cores. Esses momentos vieram em sequência, ao que me pareceu, mas pararam por aí.

Enquanto isso, Maestra Juanita rastejava pela sala, parando em frente a cada um e cantando hinos e ícaros Shipibo. Era incrível observar o poder daquele ser tão pequeno, com idade para ser minha avó, cantando por quase uma hora em frente a cada um de nós, num total de quase seis horas ininterruptas.

Eu queria dormir, mas ao mesmo tempo, sentia a presença da Maestra se aproximando. Queria aproveitar cada segundo daquela magia, mas tinha dificuldade de lutar contra o sono. Sabia que poderia estar deitada quando cantasse para mim, mas ao mesmo tempo, queria honrar sua presença e admirar sua força de perto. Até que ela chegou.

Meu corpo, involuntariamente, acompanhava com movimentos leves as canções entoadas por Juanita. Ela, ali sentada enfrente a mim, cantava como que possuída por um espírito superior. Movimentava os braços, horas na minha direção, horas para o céu. A escuridão da mata era forte, mas os movimentos eram vistos e sentidos. Foi um momento de muita humildade frente a tanto vigor e tanta sabedoria. Meu corpo ali, dançando conforme a música. Minha cabeça tentando lutar contra a submissão e se manter racional o tempo todo.

De repente Maestra Juanita parou de cantar. Levantou o braço, como que pedindo que eu baixasse a cabeça. O fiz, encostando a testa no colchão. Ela então tocou no alto da minha cabeça, botou na boca um pouco de Água Florida e como se a estivesse soprando, a derramou sobre mim como em forma de vapor. Fez isso algumas vezes antes de rastejar para Adelina.

Quando pensei que havia chegado a hora de dormir, a Ayahuasca me mostrou de novo quem estava no controle. Assim que deitei, ela me trouxe de volta para a posição sentada e fez com que eu vomitasse ainda mais, o que agora imaginei ter sido absolutamente tudo o que havia em mim. Aí sim, deitei e dormi. 

Quando acordei, sentia frio. Maestra Juanita estava de volta no centro do semi círculo e entoava os cânticos finais, encerrando a Cerimônia. Quando terminou, Anna perguntou a cada um como estava e se desejava cantar uma música. Todos passaram a vez, até que Adelina começou a cantar lindamente. Foi como um transe coletivo. Uma meditação orgânica, natural. Maestra pediu que ela cantasse outra e ela assim o fez. Elio e Anna também cantaram algumas músicas antes de encerrarem a Cerimônia e permitirem que tomássemos água.

Sentia frio, então retornei para o meu Tambo. Eram quase três da manhã, dormi então por mais cinco horas.