Daily Archives: 13 de agosto de 2010

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Enfim, vejo!

Foram 14 dias desde a saída do Brasil, até a chegada, agora há pouco. Dois dias para ir, dois dias para voltar e dez dias de trabalho intenso sem direito a descanso. Ok, tivemos um dia de turismo mas, nesse dia, não descansamos. Com foco na Ásia, fizemos apenas uma parada em Johanesburgo, aproveitando as oito horas que teríamos de conexão para fazer um mini safári, cujas fotos já postei.

Fazia um tempo que eu queria ler Saramago. Ainda não havia lido nada dele e isso me frustrava. Juntando o útil ao agradável, mais o empréstimo do Diego que, de uma só vez me trouxe três livros do autor, abracei Ensaio Sobre a Cegueira, olhei bem para capa e coloquei na mala de mão. Ele seria minha companhia durante os intermináveis trechos dentro do avião. Mais tarde eu constataria que não poderia ter escolhido uma história mais apropriada.

Porto Alegre – São Paulo, São Paulo – Johanesburgo, Johanesburgo – Hong Kong e lá estávamos nós. Um grupo de dez pessoas, sete homens, três mulheres, sendo bem recebidos na cosmopolita Hong Kong. O lugar é totalmente internacional. Fora alguns perrengues com taxistas, a maioria da população fala inglês, ao menos para ajudar no que for preciso. Do alto de um dos tantos arranha céus que existem por lá, podemos ver o porto, um dos mais movimentados do mundo, as luzes que decoram os prédios mais altos e, é claro, a variedade incrível das mais famosas marcas internacionais: Louis Vuitton (a preferida), Gucci, Giogio Armani, Miu Miu, Chanel. É coisa pra gente grande.

No livro, as pessoas vão ficando cegas, umas após a outras, numa espécie de epidemia de cegueira. Tentam adaptar-se como podem a nova vida, e as lembranças ainda muito recentes, permitem que tenham uma certa noção de espaço. É o início de uma cegueira que virá a ensinar sobre o que não vemos, e sobre o que não queremos ver. Hong Kong é a visão perfeita, sem lesões, miopias ou cataratas. A curiosidade sobre a China só aumenta.

Já havia estado em Hong Kong por três vezes, essa era a quarta, mas a China Mainland, como eles dizem, ainda era completamente desconhecida aos meus olhos. Hong Kong é considerado parte da China, mas ainda assim, tratado como um país independente. Entre Hong Kong e outras cidades, é preciso fazer controle de passaporte. Aliás, em Hong Kong não precisamos de visto, nas outras cidades, sim.

E é chegado o dia de irmos a Pequim. Quase um grupo de excursão atrás da bandeirinha da guia de turismo. A diferença é que o grupo não seguia nenhuma bandeirinha, seguia o Cícero, que com toda a sua experiência de Ásia, se encarregava de pegar os passaportes de todos, cada um com seu cartão Star Alliance Gold (uns atuais, uns sem selos, uns vencidos, uns mentirosos) e negociar para que ninguém pague excesso de peso de nenhuma das trocentas malas, entre roupas e amostras, que tínhamos conosco. E lá íamos nós, em comboio em direção a aeronave da Air China.

http://www.youtube.com/watch?v=Zz3t3j1uNEY

Na história de Saramago, personagens sem nome, são levados a um prédio onde antes fora um manicômio, como quarentena, caso a cegueira seja mesmo contagiosa. Lá eles são guiados, sem saber, por uma mulher que parece imune a epidemia. Só o marido cego dela sabe que ela vê, e os cegos são facilmente enganados por ela que, para a sorte de todos, procura apenas ajudar.

Pequim é a capital do país, foi sede de Olimpíadas, deve ser uma cidade bastante preparada e internacional, certo? Errado! Bom, pelo menos em termos. A cidade até que é bonita. Plana. Mas bonita. É lá onde estão os principais pontos turísticos da China, a Grande Muralha e a Cidade Proibida. Tudo muito bonito, muito legal, mas o povo… ah, esse é um caso a parte. Mal educados, grosseiros, escarram e cospem em qualquer lugar, arrotam e peidam como se dissessem bom dia. Isso sem falar no empurra, empurra. Parecem mesmo um bando de cegos caminhando sem destino, mas querendo passar na frente uns dos outros. Para completar, descubro que o governo chinês bloqueia o Facebook, o Twitter e, pasmem, o Blogspot.

O governo chinês é cego ao censurar informações. É cego ao não permitir que seu povo pense, que tire suas próprias conclusões. É cego ao abrir a economia do país e não permitir que sua população entenda o ocidente. É cego e faz o povo cego, servil, submisso. Não é a toa que os cargos de diretoria na China são normalmente ocupados por estrangeiros. É a cegueira daquele que não quer ver. Qual será o pior tipo?

No manicômio, os cegos começam a se organizar. Ainda é difícil a vida por lá, principalmente porque a mulher que vê precisa sempre fingir que não vê. Ainda assim, com uma estrutura organizada, as coisas vão melhorando.

Chegamos em Xangai, a cidade mais industrializada da China. Pelos enormes prédios, podemos já perceber que o desenvolvimento está chegando primeiro por aqui. É em Xangai, nossa última parada,  que fica o prédio onde o Batman, o Cavaleiro das Trevas, se atira e pega um chinezinho e para dentro de um avião. Bom, pelo menos foi isso que o Rodrigo disse. Eu não vi o filme.

Enfim, Xangai é bem mais agradável. Ainda sinto uma sensação de que estou prestes a ter um ataque de pânico tamanha a multidão de pessoas em qualquer lugar que se vá. Pelo menos aqui eles parecem um pouco mais educados. É um tal de “How may I assist you?” pra cá e “Good morning Miss Ramos”, pra lá. Aliás, dá pra se perder a conta de quantos “mornings” a gente fala só entre sair do quarto e sentar em uma mesa para o café da manhã. É a organização que deixa tudo assim, mais calmo, apesar da quantidade de pessoas.

Xangai – Hong Kong, Hong Kong – Johanesburgo, Johanesburgo – São Paulo, São Paulo – Porto Alegre e eu finalmente chego em casa. É a mesma sensação que teve o primeiro cego, quando no final do livro ele pisca os olhos e diz: Vejo! Não sei como é possível, mas vejo!

Voltei a ver! Voltei a poder ver! Estou em casa!