Daily Archives: 4 de março de 2010

You are browsing the site archives by date.

O barulho é no andar de cima

Enfrento alguns defeitos básicos.

Um deles é derramar água quando coloco a fôrma de gelo de volta. Vou empoçar a cozinha e molhar os pés.

São décadas cumprindo vagarosamente os passos da pia até a geladeira e sempre desequilibro na última hora, seja ao abrir o congelador, seja ao procurar uma fresta entre as comidas e o pote de sorvete. A ordem é frágil. Atinjo o cume, finco a bandeira e um desmoronamento de neve termina com a paz.

Não é saudável minha insistência, porém odeio fracassar. Não tem sensação pior do que se enganar e mentir aos outros para tentar se convencer.

Talvez não faça questão de sair de uma crise e goste realmente do pessimismo. São hipóteses para fugir das certezas desagradáveis.

Já sondei fazer um curso ou assumir a função de garçom nas férias para efetivar o equilíbrio. Duas coisas se deve ensinar ao filho para evitar frustrações sexuais no futuro: amarrar o tênis e guardar o gelo. O resto ele aprende sozinho.

Durante a contratação pela universidade, agendaram com incrível antecedência o teste psicotécnico. O RH garantia um privilégio e concedeu duas semanas de preparação. Ou seja, uma quinzena para exercitar minha paranoia e refinar o bruxismo.

Não posso esperar muito tempo senão apodreço. Acalentei pesadelos por noites seguidas em que o teste admissional seria caminhar com a bandejinha cheia por todo o campus. Acordava gelado.

Não ria de mim, aquilo não é fácil, é um dos mais horrendos crimes da civilização, ao lado dos buracos da camada de ozônio. É a força do Inconsciente Coletivo pesando os braços.

Antecedentes devem puxar nossa espinha. Reencontramos nas vértebras os arrepios dos condenados injustamente pela Inquisição enquanto caminhavam para o cadafalso.

Eu me vejo próximo da tosse de Giordano Bruno, primo do suspiro de Joana D’Arc.

O problema não é meu, ninguém deseja renovar a bandeja — na maioria das vezes, encontro a morrinha com duas ou três lascas. O familiar usa e devolve como se não houvesse nenhum desfalque. É a maior cara-de-pau.

Deixa o suficiente para seu uísque de madrugada, e só. Claro que descobriremos os tabletes vazios tarde demais, no momento de receber visitas e retornar do mercado com as garrafas quentes do refrigerante.

A generosidade do casal não está nas atitudes ostensivas que fazem parte do repertório de provocação e que permitem flagrantes como trocar o papel higiênico ou não largar a toalha molhada na cama ou manter seca a tampa da privada.

Generosa é a substituição do gelo, uma ação sem sabor e transparente como a água. Discreta, qualquer um pode disfarçar e fingir desinteresse.

Contrariar pequenas preguiças traz sobrevida amorosa. Repondo as pedras, asseguramos a longevidade da relação.


* Fabrício Carpinejar, escritor, jornalista e professor universitário, autor de quatorze livros, pai de dois filhos, um ouvinte declarado da chuva, um leitor apaixonado do sol. Quando conseguir se definir, deixará de ser poeta.

Pode invadir
Ou chegar com delicadeza
Mas não tão devagar que me faça dormir
Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar
Acordo pela manhã com ótimo humor
Mas … permita que eu escove os dentes primeiro
Toque muito em mim
Principalmente nos cabelos
E minta sobre minha nocauteante beleza
Tenho vida própria
Me faça sentir saudades
Conte algumas coisas que me façam rir
Viaje antes de me conhecer
Sofra antes de mim para reconhecer-me
Acredite nas verdades que digo
E também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa.
Respeite meu choro
Me deixe sozinha
Só volte quando eu chamar
E não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada
Então fique comigo quando eu chorar, combinado?
Seja mais forte que eu e menos altruísta!
Não se vista tão bem…
Gosto de camisa para fora da calça,
Gosto de braços
Gosto de pernas
E muito de pescoço.
Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, cheiros, olhos, mãos…
Leia, escolha seus próprios livros, releia-os.
Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos.
Seja um pouco caseiro e um pouco da vida
Não goste tanto de boate que isto é coisa de gente triste.
Não seja escravo da televisão, nem xiita contra.
Nem escravo meu
Nem filho meu
Nem meu pai.
Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.
Me enlouqueça uma vez por mês
Mas me faça uma louca boa
Uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca …
Goste de música e de sexo
Goste de um esporte não muito banal
Não invente de querer muitos filhos
Me carregar pra a missa, apresentar sua família… isso a gente vê depois … se calhar …
Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora
Quero ver você nervoso,inquieto
Olhe para outras mulheres
Tenha amigos que se tornem meus amigos e digam muitas bobagens juntos.
Me conte seus segredos …
Me faça massagem nas costas.
Não fume
Beba
Chore
Eleja algumas contravenções.
Me rapte!
Se nada disso funcionar …
Experimente me amar!”



* Marta Medeiros é gaúcha, escritora, mãe e tem gatos!